I - ONTOLOGIA
No princípio, era a Terra.
1. Passiva e amena, a terra floria, como em primeiro dia. Sonhava-se em flores, em cheiros, em ternuras... e pela brandura das tardes soalheiras é que adormecia: o tempo era eterno.
2. Florida e amena, a terra sentia o amor do humano. Amada e feliz, a terra sorria... e não é que paria como em primeiro dia? Tubérculos e frutos, mui pássaros, ginetas e lebres, coelhos e néctares de flores que ao homem sorriam.
3. Obeso e feliz pelos frutos da terra tão fáceis ali, criou espingardas: matou javalis. Sonhou as distâncias: pôs marcos aqui... e ali. Expulsou a gineta e a alegria: roubou javalis.
Floria a terra? Mesmo assim, floria ali.
4. Na tenda ao luar, criou os seus filhos: gritavam ginetas... gritavam nos sonhos e nos pesadelos dos homens de ali: morrera a alegria e o velho homem não sorria ali. Sonhou uma casa: com quatro paredes, telhado em oblíquo, lá dentro uma cama. E veio o sossego para o serenar. O humano sorriu: “Deus é bom.”
5. E ao quinto dia, sonhou com a esposa o trigésimo filho. E porque galinhas não havia ali e porque a esposa suava, suava, se domesticou. E foi então que casou o seu medo da gineta com a Quinta que o cercou: ficou D. Conde de tal e geriu no seu perímetro a corte de trinta filhos, azagaias, zagalotes, alfaias e mui dichotes e rixas que há entre irmãos para disputar o pão que ao pai sobrevivia. Quanto à mãe, ia sonhando pelo destino dos filhos... e era a Terra que floria.
6. No sexto dia, tossiu... pigarreou o humano: mas será que eu sou só D. Fulano e Beltrano, o primeiro em origem, e tenho só de parir mais trabalho, mais riqueza, para depois distribuir pelos pobres (que chatice!) e pelos filhos quezilentos, todos filhos do papá e do juízo da mamã e do sonho que os governa? Porra, porra!... – diz D. Conde e diz D. Conde pequeno, já mui farto de o ouvir: vá-se embora, ieramá, e deixe-me a mim florir nesta nova sociedade que aqui vamos construir... Pigarreou o humano, mas foi só pela criança que ele pôde subsistir
7. E foi no sétimo dia que tudo cá refloriu. Disse D. Conde pequeno que mais valia um dichote mal - parido, atrevidote que ensombrasse o papá, que a corte de ginetas que ensombravam a existência da corte calma e amena das flores que não pariam. Por isso as plantou ali. Regou-lhe o jardim dos olhos ao pai velho a descansar da labuta, do trabalho... Foi artista do descanso, pois só ao 7º dia completou o ser humano.
II - GEOGRAFIA
Por entre milheirais, voavam pássaros.
No arroio, ora deserto, as garças – irmãs do Tejo – sonhavam pelo sol-pôr miríades de raios domésticos. Fértil e umbrosa, a terra cheirava a novo: sempre doméstica, sonhada, arroteada por dentro no milagre de ser o que sempre nós conhecemos dela... fartava-se de sol e bebia da água sempre fresca que pelos veios da terra assomava como em fontes ou saltitante, perdida, se prolongava em cascata no caminho pedregoso que pela noite embalava o fácil sono, menino. Fértil e densa: de seios fortes erigidos em colinas, a terra era habitáculo dos deuses.
Lá longe, para lá das densas pradarias onde os cavalos respiravam sol e liberdade, havia o Tejo e a lezíria (extrema e às vezes dura, e era a Estremadura que por aqui assomava). Ao alto, sempre a Montanha, mãe de abrigo das ginetas que ao poeta encantava e por isso A cantava: mãe celeste, mãe de abrigo, mãe dos brejos, de oliveiras todas floridas em frutos e em velhas macieiras, nespeirais e laranjeiras, todas em dom de abundância: de água, sol e calor e oxigénio aos montes...
Na humilde quinta de um velho Dom senhor de terras e açaimes de cães, vivia o Homem. Fora um velho senhor ameno e suave no lento passar dos dias que escorriam em sonhos envoltos de passado: toda a família ali sonhara e sempre ali vivera. Conde da terra, senhor de grande auxílio e amor perpétuo à terra que os amara, vivia hoje na periferia da Quinta. Fora o acaso que o trouxera, ao novo rico da terra. Velho emigrante de paragens incertas, em sonhos de criança foi menino eterno: namorou a terra e sonhou-a em casas. Como senhor de terras, foi tirano: que sempre se despreza o deus que entrega por dinheiro o seu sonho de arquitecto. Das casas que sonhou em cogumelos, nem a raiz da terra conservou. Erigidas em presente, periclitantes, já não sonham o vento nas pracetas, nem as aves nas árvores que são delas, nem o canto do silêncio que enternece a pradaria... O passado morreu com D. Senhor das casas.
Em casa, na quinta velha, sonha ainda o velho mestre. Arroteia e semeia e tudo lhe é ainda dom: dom da bondade que sonhara, dom da quinta nova restaurada, dom do sonho novo que ocultava: “Por entre milheirais voavam pássaros...”. Humilde e bom, crê na terra que ora ama e por dentro dos sonhos de futuro vê cavalos na lezíria, estampando o sol dos milheirais no entardecer iridizante dos arroios. Vê têvê e vê o outro: o arroteador de dinheiro, o especulador pecuniário, o torcionário insurrecto, o ladrão de ecologistas... todos querem, mas não crêem... todos queriam, mas não criam... só pelo ouro labutam e ao veio negro da terra chamam preto e são suspeitos de ladroarem a terra que o especulador de dinheiro só lhes financia a crédito... Esta é a Quinta do Conde, a do homem que labuta, encaixotado e doente, farto de sol e cimento, gritado na pradaria em sede de amor e fé... Desligou a televisão, que já nem têvê se vê...
E digam, agora, senhores, que sou mais uma saudosista dos tempos desses arroios que semeavam de sonhos os nossos cinco sentidos. Olho para trás, vejo o vento e as searas floridas, vejo quintas e senhores que têm nos seus quintais as uvas com que alimentam a sede dos seus parentes... todos unidos, seguros, cantam no clube da terra, viajam pelo passado em bailes e romarias que as há (e ainda muitas) bem junto da nossa terra... E é deste nosso passado que ainda aqui é presente que tenho orgulho em falar, pois
“No princípio era a Terra”.
Gostei muito de ler este texto sobre a origem da Quinta do Conde, mas tenho pena que não esteja todo, termina em pois...
ResponderEliminarO meu nome é Ana Viana e sou professora do 1º ciclo na EB1nº 1 de Quinta do Conde e é com muito prazer que irei ler este texto aos meus alunos de 4º ano.Obrigada.
Peço desculpa à Ana Viana por não ter respondido. Se quiser, diga como correu a "aventura" com o seu 4º ano... Se correu bem, muitos parabéns (...). Obrigada pelo gesto.
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