VERCINGETÓRIX E CLEÓPATRA
Introdução
Velha guerreira de estradas,
cortadas a pique algumas,
foi um dia a vossa amiga
transportada para o campo.
Na cidade, não floria
a não ser em pensamento.
Pelo campo progredia
e em silêncio sonhava.
Com as estrelas por dentro
que a vida vai revelando
ao longo do nosso tempo,
foi pata-choca também.
Quis florir em muitas histórias,
mas foi só pela Magnólia
mais velha do seu quintal
que um dia se apaixonou.
Junto a ela serenou
e este livro vos trouxe
para do Amor falar.
É por Ela que vos fala,
pela árvore florida e bela
que todos nós já plantámos.
É sempre uma avó serena
a que nos reconta a história
da vida que nos habita.
Traz segredos de família,
velhos baús confiscados
ao reino da fantasia.
Traz a magia do canto
no berço que nos embala
e traz no conto outro tanto
do amor que aqui nos fala.
Fala de patos a história
e só de patos se fala?
Não me parece, senhores,
que o reino da fantasia
é trespassado da luz
das estrelas e da lua.
Traz velhos sonhos das gentes:
um pouco de paz, sossego;
novas raízes apensas
aos livros que já vivemos.
Por dentro de cada uma,
um velho mito a perpassa:
mergulha fundo no tempo
e só em cada momento
um gesto breve a desenha
.
Fica p’ra vós e p’ra mim
a história deste casal
de patos que, por sinal,
nos é família também.
Cada um com seu sonhar,
com penas várias também,
vai desenhando por dentro
o sentido que ela tem.
Se és só jovem, te enobrece
a leitura que aqui fazes;
se és adulto, tens a sorte
de não teres perdido a arte
de seres tu jovem, também;
se és só Mãe e fores D. Pato,
nestes casais que hoje há cá,
com um pouco de harmonia
a podes tu solfejar
à criança que trouxeste;
se Mãe és e D. Pata,
dessas mães que ainda há cá,
tu lhe trarás a memória
das nossas Avós também:
Nossas Senhoras do Bem
que, pela calada da noite,
nos revelam nas canções
de embalar e outras rimas
a velha barca da sorte
onde à noite nos aninham
p’ra podermos descansar.
Dorme o filho, dorme a mãe
e dorme o papá também...
que o que segue é de embalar.
1.
Quando regressei, a pata-choca tinha sido trocada por Cleópatra. Leve e airosa, com o rabinho a-dar-a-dar, lavou-se na manhã breve com o perfume das rosas que floriam. O sono lhe fora feitiço que toda por dentro a lavara. Lenta e com donaire, sobressaltou-se pela primeira vez: junto a si, com uns remos de marialva listrados em abandonos de cor, o velho guerreiro-pato cheirava a última rosa crescida no abandono das rosas do seu jardim. Foram dois olhos profundos em lagos emersos, imensos que, num repente de amor, lhe trespassaram a dor do seu marido
perdido.
Vercingetórix, o velho pato guerreiro, regressara mestre: amestrado e serviçal, servia de ora em diante com as plumas de pavão que, em sossego de amor, lhe tinham listrado a bela e sempre reluzente plumagem. Com o ardor do olhar ainda na garganta e um quáquá de olvido ainda na retina, o senhor D. Pato, agora “gentleman”, fora benquisto aos olhos da sereia, pata lustrosa e amena que se espreguiçava, preguiçosa e dengosa, pelos areais do prazer. Velha pata, sem brios de ser jovem ou pata-gansa (que longe iam os seus tempos de guardadora de quintas), atreveu-se a um sonhar: se ele me trespassa e eu o solfejo, porque não há-de o trespasse de música nos ser enleio?
Assim já sonhados, partiram para o leito em penas guardado.
Com o sonho de pato e o Dom de Cleópatra (ora bem mais simpática), foi-se o pato à pata e em sossego lhe debica a breve peninha toda. Toda e tonta. Tonta de sonho e de enlevo, a D. Pata Cleópatra, dona sereia do lago, limpou-lhe logo os maus tratos e trouxe-lhe a ele o filho. E olhem lá o peralvilho deste filho de mãe-pata que, ainda breve no ninho, já não é no seu soninho senão um cristal da mãe: nele se revê e canta, por ele toda se encanta, por ela reza também. Quando o vê rezar a ele, todo por dentro sonhado em sorrisos de aconchego, mãe pata-mole e doceira (que toda ela é pão-mole ao olhar p’ró seu rebento), se lhe levanta o quebranto e o faz florir em histórias. “Que vai ser do meu rebento? E do meu sonho por ele? Vai ser ele pato-choco e sair ao seu avô ou como guerreiro cresce e me aconchega de novo a memória do papá?... Se eu pudesse só tecia de sonhos este meu livro... Olho p’ra ele, enterneço; como mãe-pata esmoreço e só o sei desfolhar... No rosto do livro cresço, pela capa me sustenho e lhe sonho a contra-capa, logo, logo a debandar para as gravuras ...”
- Quá, quá, quá! Posso entrar?
- Quá, quá, entre, por favor!
Entra agora Mãe Magnólia, que é florida duas vezes: duas vezes foi sereia e duas vezes mãe-pata. Por isso lhe chamo avó e agora a trato só por Vóvó do seu D. neto.
- D. Neto, sou eu também – diz o menino traquinas que esta história nos escuta. Posso ser também com ela, D. Neto forte e airoso?
- É que eu quero ter um pato – diz o menino traquinas que esta história não olvida.
Se a ouvires com atenção,
à velha história da pata
mãe Cleópatra o fará
e talvez até te traga
um outro conselho novo
com que poderás florir
durante a noite o teu sonho.
Vou sonhar contigo, agora,
a nossa história de patos
que da Mãe é e do Pai
e de todos nós também,
que os amamos e trazemos
para a memória das gentes
que aqui foram já sonhados
como dons patos parentes
de todos os que aqui estamos...
Bom, vou florir mas é a história,
senão parto sem memória...
- Conta lá!
- Aí está!
3
Era uma vez um voo de patos
que dentro de um prato
um dia voou...
voou p’rá Sibéria
-ou foi p’rá Mongólia? -
Mas se foi por Magnólia
que ele regressou!...
Magnólia era árvore
e bela senhora,
com todo o amor
das tristes donzelas
que em pratos se sonham
em voos de azul...
Por isso era avó.
E foi num “frisson”
que um dia chegou,
pelo manso da tarde
pergolada em flores.
Pela sombra rasteira
do final da tarde,
um dia chegou.
Chegou e contou
ao neto patolas
as velhas histórias
da sua família.
Duas eram belas
e nelas guardou
o voto de amor
que às madres se doa.
No livro as escrevo
e as guardo também,
p’ra que nunca à Mãe
falte o abandono
do sonho tranquilo
que no filho vem.
4
Pela primeira delas, um dia contou do raio de luz que lhe fora prece: é que o seu filhote, dom pato feliz, já fora traquinas e igual ao pai dele e, como guerreiro, o papá progredira. Um dia chegou com as armas cansadas e o bico de pato de novo açaimado. Dizia-lhe então, com tristeza já, que nunca assim cá olhar podia o raio de luz que a avó lhe trazia. Já farto e eu farta do charco das patas onde ele se vinha, p’ra ele me vim e lhe demandei:
- Queres tu ser pato?
- Sim...
- E queres ser feliz?
Que sim e que sim, que feliz queria ele ser, enfim.. – recontava ao petiz, a vóvó Magnólia em riste. Toda ela em sol-pôr lhe surpreendia o amor nos olhos e nos ouvidos, que bem atentos p’ra si a marchetavam de flores e de voos de andorinhas.
- Diz lá então só p’ra mim! Quis ser feliz o petiz?
- Quáquá si, vóvó-madrinha!
- E pela rota do sol que traz ele no lençol?
- Lá fá sol... lhe traz pão-mole!
- E pelo reino do boné, que traz ele do Cais’Sodré?
- Fá mi ré... buédaparlapié!
- E pelo voo da vóvó, que traz ele no pópó?
- Mi ré dó... Não tem ainda pópó, vóvó!
E foi assim que um dia
o viu a vóvó-madrinha,
todo inchado pelo vento,
transportar-se em pensamento
p’las migrações de lamentos
que os outros patos faziam:
se no tempo ele ancorara
e o pópó não conduzia,
pato feliz não seria!...
Quis um ninho: construiu – o;
do pópó já se olvidava
- (é que há um pato feliz
em cada voo de sonho
e só por ele avançamos!) -!
Tranquilo já e contente,
foi assim que ele aterrou
na pata-choca de antanho,
mais florida, mais sabida...
e assim a governou
à barca da sua vida.
Hoje é um sonho de pai,
mestre já na sua estrela:
pelos ombros de gigante,
de onde o petiz nos espreita,
se devolve em harmonia
à sua própria magia
e à do tempo que se deita
descansado em seu viver.
Vive a vida pela mulher
e nos seus ombros se deita;
pela criança sorri
e é sempre pelo tempo
que se acasala também.
Pai hoje é, filho será
e nessa sombra repousa.
Por dentro de si a luz
que nos dá em cada dia
o raio que nos ilumina
e alimenta o tecer
de cada segundo exacto.
Regressa teu pai também
pelo velhote traquinas
que neto é desta avozinha
que o ama pela história.
Se ele te é um raio de luz
por que eu te possa puxar
p’lo reino da fantasia,
é porque te é alegria
leres e ouvires a história
daqueles que te fadaram.
Teus pais foram e felizes
e só porque se olvidaram
de si um pouco também,
te trouxeram e se encontraram
por dentro deles também.
Tu lhe és um raio de luz
da estrela trazida aqui,
pela qual tanto se amaram.
São teus pais. Se os amares,
neles tu lerás um dia
o resto que aqui não cabe.
Há quem lhe chame Saudade,
outros só uma nostalgia,
misto de sonho e de olvido,
futuro trazido em flor
para as memórias desta vida.
5
- Então diz lá, meu patinho, patolas de mãe Cleópatra, patachim da sua avó!...
- ...
Eu sei!... Eu sei que a mãe é megera
e te traz às vezes dores...
Vem cá, patachim das flores,
flor-de-estufa dos amores
que às vezes encontro aqui
todo inchado da magia
que as novas espécies florais
te trazem com a ventania!...
Quando eras só um bébé
e a avó aqui morava,
durante toda a infância
dos versos que aqui cantava,
eu era bem mais feliz.
Tu tossias e eu xaropava
e logo o garoto tossia
cada vez menos tossia.
Ao filho trazia sempre
a guarida duma couve
que alombardava a criança
ou então pela cegonha
que de Paris imigrava
se retesava o lençol
que o aeróstato desenhava.
Vinha a criança dormindo,
toda em versos retecida
e pelo sono vencida.
Eu era só a avó
e p’la calada da noite
vinha à noite serenar
os votos do meu D. Neto.
Era só uma historinha...
ou uma canção de embalar...
e lá vem o seu sonhar
p’la segunda destas histórias!
6
- Olá, Tritão, como vais? – diz pata-sereia ao pato.
- Quáquá vou... e tu, também?
Porque o ovo não chocara
e o tritão a libertara
do seu voo de passarola,
pata-sereia bem triste,
convidou-se para jantar
e desapareceu no ar,
para entre céus despertar
um voo que rumo lhe desse.
Como gansa, fora mãe,
mas tristonha prosseguira,
pois só lhe rondara a Quinta
outra pata traiçoeira
que ao amor não conhecia...
ela era bela e benquista
lá na quinta dos patrões,
sempre mansa e amistosa
p’ra quem benquerer lhe queria.
Como sereia foi bela
e sempre o sonho lhe deu
um esteio de pato-cisne.
Pato-Tritão fora o único
que a ela concebia
como uma da sua espécie.
Se ela era preguiçosa e dengosa
e pela esteira dos dias
em pata se rebolava,
ele era feliz e triste,
porque o mais triste dos tristes
dos patos-gansos de outrora
lhe confiara a doutora
peninha com que os doutores
ainda hoje se escrevem.
- É doutor meu puro-sangue, meu cavalinho-tritão, meu ganso arcaico celeste? – diz sereia já no choco, que ao tritão devolve a mão.
- Eu sou doutor e doutora, sou tritão e tu tritona; se me escreves em sereia por dentro do teu servir, eu te ofereço um desastre que a nós dois há-de servir. Tu vais servir para o céu das patas-chocas também e eu, por celeste olvido, cá cofiarei a pena com que aos outros desafio a olvidar a sereia... ou seja, pata-choca tu vais ser e eu no choco vou servir. Queres tu assim progredir?
Pata-sereia dengosa, ultrajada no seu trato e nas penas que sofria por amor de seu D. Pato, lhe ofertou em casamento um bolo-rei já servido aqui e em outros lugares...
Pouco durou o desastre do cavalinho-tritão com sua triste sereia.
Já no chão e bem na Quinta, junto ao lago onde mirava o seu velho olhar de pata, pata-dengosa recolhe pelo orvalho da manhã uma estrela de amizade.
- Eu sou pato e sou guerreiro e tu quem és, ó Senhora, velha dona dos meus sonhos?
- Em sonhos te vi eu já. Eras tu que em tritão te olvidavas de mim e em mãe me resolvias.
- Tu no choco e eu ... malvasias!...
- Meu velho tritão sangrento que tanto mal ofertaste às patas desta nação!...
- Eu sou um velho tritão? Mas eu não passo dum pato. De um pato-cisne não venho que em riste me vi eu já sem um sonho de alegria... Cantem eles em agonia que eu prefiro viver cá, que só pelo choco me venho.
- Eu cá Mi canto em quáquá... e tu, quáquá sonhas?
- Quáquá, Si. Eu te completo e é contigo que eu rimo.
Ela- Dó Ré Mi...
Ele- Eu pedi
Ela- Mi Fa Sol...
Ele- um pão-mole
Ela- Fa Mi Ré...
Ele- p’ró café
Ela- Mi Ré Dó...
Ele- da minha avó.
Ele- Dó Ré Mi...
Ela- A Mimi
Ele- Mi Fa Sol...
Ela- pelo sol
Ele- Fa Mi Ré...
Ela- vai a pé
Ele- Mi Ré Dó...
Ela- não tem pópó.
Feliz por ver, finalmente, o seu casal de patolas cantar a mesma canção em véspera de acoplamento, velha Magnólia pressente que chegado é o momento de ela própria cantar o hino do casamento, de ela própria ofertar o livro do entendimento...
Rasga Magnólia pelo céu
um tremeluzir de estrelas
que às crianças dá sossego
e aos jovens muito espanta.
Nunca nele se decanta
o verso exacto ou menor:
vem ele de pé-quebrado,
venha ele aqui luzir
e se ao velho som decanta
é ainda pelo cristal
de sonho de cada um
que ela vem aqui sonhar.
Traz presentes para a gente...
- Patos-bravos eram eles,
que hoje me estão em sossego...
Versos querem? Mais ainda?
Escreve, poeta, o que se sentes
e mais se te canta ainda!
Filhos querem?
Patos, de orgulho rebentem,
que o patolas veio enfim
e se juntou aos meninos
do coro da sua avó,
p’ra lhes cerzir a memória!
Venha lá o Dórémi
que eu cá faço o Mifasol;
tragam-me lá o Pão-mole
ou o Monólogo do Vaqueiro,
que o resto reteço eu cá.
Trago p’la estrela da sorte,
o velho Dom das sereias
e só pela “patoleia”
lhes falo eu em Cleópatra
ou no guerreiro intranquilo.
São patos e querem ser
felizes até ao fim.
Tragam-me lá o jasmim
do filho que vos encanta
e vo-lo trepo em garganta,
até que seja canção.
Se ele me foi patachim
e hoje me é coração,
é porque a sereia aqui
mais não é do que o enredo
das filhas desta nação.
Mulheres são e patas-chocas:
algumas delas cá estão,
bem prontas já p’ra florir.
As que a sereia florescem,
mais não fazem que cantar
e pelas cigarras de antanho
se encontram a formigar
p’las paredes em que trepam
os homens a debandar.
Se são tranquilos debatem
com os filhos o seu sonho,
se ao sonho curtem somente,
mais filhos são que parentes
da pata-choca que os trouxe
e lhes alimenta o ventre.
São meus filhos todos eles
e todos florescem aqui.
Sou pata-choca no choco
das estrelas da nação.
Pela varinha de condão
trago o sopro que enobrece
o sentimento de amor:
pelo choco o enobreço,
pelo filho o enalteço
e pela Mãe o revelo.
7
Como viram, meus senhores,
sou Mãe, sou Pai, sou Avó
e sou a Filha também.
Trago sempre nesta história
de patos que aqui hoje há,
um retrato da nação
constelado em Angsoka.
É planta “mirabilis” esta
que já me vem da infância:
terno voo de andorinha
sossegado na criança
que todos somos, enfim.
Trago um laço de cetim?
Um conto de amor o traz...
no gesto breve do sonho,
enlaçamos nós a paz.
Pela ternura das mães
que aqui vivem e sustentam
os laços de amor total
que nos reune em abraço,
somos a roda do mundo
virginal que aqui sonhámos.
Um só laço, um só sonhar...
num abraço repousar...
para partirmos depois.
Partimos sempre em viagem
pelo tempo que nos é
história viva e amansada...
lua nova, traiçoeira,
não se açaima pelas marés
da noite onde se espelha;
vive do lado de cá,
a sombra mágica dela:
se a sonhamos, a vencemos,
que os medos fátuos do além
nos devolvem o abraço
para esquecermos o cansaço
que ela nos traz também.
Pela luz com que a sonhamos,
nos devolvem as estrelas
da nossa sorte, afinal,
tudo o que é do luar
já mais sossegado cá.
São Senhoras que as habitam
e por Elas nós rezamos:
veios de Amor As conduzem
aos nós do nosso sossego.
Aqui nos trazem a Mãe,
que nunca outro Dom contém,
que o de ouvir e o de contar
e a rota iluminar
dos filhos que Ela aqui tem.
Por Ela somos felizes
e nos iluminamos também.
Vitória, vitória!... Acabou-se a história!
Para todos os patos, patolas e patachins
que espreitam no tempo um raio de luz,
vos deixo um babete, vestidos, brocados,
todinhos bordados com o meu ponto - cruz.