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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

"Oh Portugal, hoje és nevoeiro..."

Quando era miúda, adorava este feriado: era "Dia da Mãe". Depois que foi transferido para o último domingo de Maio, o 8 de Dezembro foi ficando esvaziado para quem não tem uma prática católica, o que é o caso. Acontece que acabo por ler jornais e etcs e tais e quando dou por conta já estou quase a tiritar num inverno de alma: “jogos estratégicos”, “paraísos artificiais”, novas "dinastias" ... É melhor não explicitar nem especificar mais nada: peço emprestada a palavra ao poeta e lá desabafo um pouco.

Os medos

É a medo que escrevo. A medo penso.
A medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo
A medo me renego, me convenço

A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.

A medo durmo. A medo acordo. A medo
Invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.

A medo guardo confissão, segredo.
Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo, mudo.

José Cutileiro Os medos, in Versos da mão esquerda, 1961.


ROMANCE DE REI HIPOTÉTICO

Na Tichunlândia há um rei
(se não há, podia haver)
que tem um iate de oiro
para nele se meter;
milhão e meio no bolso,
vinte milhões a render;
cem donzelas das mais lindas
pra amar a seu bel-prazer;
e um cadillac espanhol
(se não é, podia ser).
Muito mais tem esse rei,
muito mais podia ter.
Quem vai à frente da fila
não espera pela vez
e faz do tempo um cavalo
que monta conforme quer.
Dizem os bicos redondos
que andam na órbita dele
que tem uma inteligência
(se não tem, podia ter)
que penetra os escaninhos
mais recônditos do ser.
Milagre do sangue azul!
Oh prodígio do saber!
Oh fonte de sapiência
que não cessa de correr!
Um dia vieram reis
(mais viriam) para o ver,
estrela de ânsia na testa,
ansiosos de o conhecer.
Que o sol nele se desfolhava?
Como conseguia ele
a paz nas suas cidades,
há trinta anos e um mês?
Que serafim o giava?
Como consegfuia ele
não ter dentro do seu reino
um inimigo sequer?
Vejam ora o sucedido
(ou podia suceder).
Num opíparo banquete
(desses que está sempre a haver,
com ideias luminosas,
sem nenhuma luz se ver)
o rei que nunca aparecia
resolveu aparecer.
Oh! - disseram os que enchiam
o salão de lés a lés.
Cem polícias ali estavam,
sem pingalim nem boné,
mas um volume no bolso
que bem se sabe o que é.
Na boca de cada um,
pendurado um lamiré
e nos olhos todo o olhar
felino, fino do chefe.
Ninguém podia explicar,
ninguém podia entender
que, em duzentos olhos, só
um olhar pudesse haver.
De repente no salão
que havia de acontecer?
Como se fosse um relâmpago
ou o diabo por ele,
fez-se ali um jorro azul,
e começou a azulescer
e ficou tudo azulado
os reis e roques até.
Mil pessoas aí estavam
que ganhavam nova tez.
Zul, azul azulejava;
"Sobeja cousa de veer"!
Só no fundo do salão,
com os pulsos a tremer,
um jovem roía as unhas,
não parava de roer.
"Que faz aí, seu intruso?
Como se pôde atrever,
sem as vestes nupciais,
a quedar neste banquete?
Rua!, rua!, seu intruso!
Que descaramento é esse
de nem uma flor azul
ter ao menos no colete?!"
Prenderam-no, açoitaram-no,
deram-lhe fel a beber
e uma cruz de sete metros
mandaram logo fazer.
Entretanto o rei fulgia
e os demais, tal como ele.
E as estrelas não caíram
e o mundo não se desfez
e no firmamento o sol
prosseguiu no seu arder.

Este é o romance do rei
(irreal, está-se a ver).
Quem quiser tire a lição,
tire a que lhe convier.

António Cabral, in Quando o silêncio reverdece

Como dizia Fernando Pessoa, depois de lamentar o "nevoeiro" em Portugal: "É a hora!..." Enquanto sim e não, e agradecendo ao poeta esta chamada a uma outra realidade, decido ir ver o sol lá fora e passear um pouco nesta bonita tarde de fim de Outono. Lá fora é castanho e ouro e muito verde ainda... "É a hora!"

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