Diário de memórias: 30 dias tem Novembro / Abril, Junho e Setembro; / de 28 ou 29 há só um / e os outros são de 31. Memórias, que são também as do presente: com elas convivo, me agasto e me enterneço. Com elas e delas vivo. Aqui ficarão registadas algumas: segundos retirados ao meu Baú de Sonhos (que é a Vida)...
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quinta-feira, 31 de julho de 2008
Linguagens...
Encontrei uma linguagem com a qual me identifico para sonhar o que é "desumano": talvez eufemística, com pudor e respeito pelo outro - como a batalha de Alcácer-Quibir filmada pelo Manoel de Oliveira -, sonhada pela arte e pelo olhar de quem nasceu para a beleza, o mesmo é dizer, para ser "humano"... A Guernica de Picasso é aqui, mais que uma denúncia, o eco de um olhar que só quis sonhar o universo e que, num momento deserdado de humanidade, se institui palimpsesto de muitas outras guerras. Frente ao monstro, a pomba da paz no escudo do "artista"... Muito bonito, este olhar!...
YouTube - Guernica Picasso
YouTube - Guernica Picasso
sexta-feira, 18 de julho de 2008
Aniversário (90 anos) de Nelson Mandela
Mandela e Xanana Gusmão (e Fernando Mamede, quando perdeu a medalha de ouro nos 10.000 metros) são alegrias minhas, de alma. Em qualquer dos casos, eu era muito jovem e fui sempre remetida ao silêncio pela pose faraónica e verborreia despeitada dos que não lhes perdoavam as apregoadas "fraquezas": um era "preto", nunca saberia conduzir um país como a rica África do Sul; o segundo traíra Timor, vendendo-se à Indonésia e " o do parênteses" era a vergonha nacional, por não ter aguentado o "stress do ouro" que lhe puseram às costas... Uns "fracos", portanto, como se lhes estivesse nos genes a "fraqueza" anquilosante dos que não jogam o jogo do "poder" com as armas (re)conhecidas! Esses mesmos, hoje, "perdoam-lhes" o ultraje que fizeram aos seus orgulhos desfeitos, silenciam o seu não assumido desdém e... condenam, ao segundo, o "avançado que não goleou", aquele em quem investiram a sua sede de "glória de mandar, oh vã cobiça..." (o Camões é um ganda chato e akilo não é pa ler...)...
Não estou muito feliz hoje , porque nunca me faz feliz recordar e viver estas "paralateralidades" do nosso quotidiano, mas lembrei-me do António Gedeão e achei que ele é que me tinha dito tudo: não está nos genes esta diferença (de superioridade racial ou de comportamento, seja ele qual for) mas sim ... (e agora que cada um complete - ou não - a frase...). Eu, por mim, não completo. Ainda assim, prefiro acreditar na "teoria do bom selvagem" do Rousseau...
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
Não estou muito feliz hoje , porque nunca me faz feliz recordar e viver estas "paralateralidades" do nosso quotidiano, mas lembrei-me do António Gedeão e achei que ele é que me tinha dito tudo: não está nos genes esta diferença (de superioridade racial ou de comportamento, seja ele qual for) mas sim ... (e agora que cada um complete - ou não - a frase...). Eu, por mim, não completo. Ainda assim, prefiro acreditar na "teoria do bom selvagem" do Rousseau...
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
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Xanana Guamão
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Branca de Neve e os 7 anões
BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES
Quando regressei a casa já não havia ninguém. Meu pai fora-se ultrajar com a minha madrasta e, como é habitual nestas histórias “madrasta entrada, filha molestada”. Só que entrar numa casa vazia, onde os móveis poeirentos nos lembram agonias, os sonhos das aranhas povoam a cómoda vazia e por dentro de nós só subsiste a vontade de um abrigo, é um pouco duro... Pano do pó em riste, água e aspirador prontos, a força da Mãe por dentro, limpa Branca de Neve o seu novo apartamento...
“Quem me quer bem, meu bem, me ama ainda mais
Quem me quer mal, meu Pai, me faz comer o sal...
Oooh oooh óóóh........................
Menina bonita, com cara de anjo, vem aqui comigo,
Traz a mim um sonho
Vem, fadinha linda, traz o teu encanto
Vem comigo sempre, mitigar o pranto...
Óóóóóóóóóh!...”
Bela como sempre e com flores de harmonia no canto, tudo o que na casa havia de poeira e agonia se afastou do apartamento. Limpa por dentro e por fora, a nova casa do amor da Senhora que ela era já, ficou pronta e sossegada.
No silêncio da floresta, só o canto dos pássaros a saudava. Saltitante e feliz, a borboleta adejava ao som da sua música e até os cogumelos com que ela se encantara, se vestiram de cores pintalgadas e se anelaram por dentro.
“Quem me quer bem, meu bem
O meu coração tem!
Vem, vem, vem!...”
Cantava a floresta com ela o seu sonho de verdade... A Primavera era tarda por vezes, mas a música da floresta era sábia de séculos e suturava as feridas das plantas inchadas pelo Inverno rigoroso. A pouco e pouco, também os filhotes das mais velhas plantas do Inverno ganharam força e sorriram à luz do sol que se avizinhava a pouco e pouco e de mansinho da nova casa da floresta, já limpa e arrumada para receber alguns hóspedes. Estava a Branca de Neve com o seu espelho de amor por dentro, quando com fragor e arrogância, é acordada por uma voz cavernosa e inchada, toda ela avermelhada num nariz de anão empertigado:
Narigudo - Quem és tu, ó criatura do Bem, que me arrumaste a casa e a limpaste, sem saberes quem era o dono?
B. N. - Como diz, senhor anão Narigudo? Eu sou a Branca de Neve florida. Desci do Inverno despida de alegria e aqui encontrei um pouco de fantasia...
N - Fantasia, minha cara menina? Um anão não sabe o que isso é! Não a quero cá, nesta minha casa... minha, não, nossa, que isto é só uma casa de irmãos. Quem a mandou fantasiar a nossa maneira de habitar?
B. N. - Desculpe, senhor anão, eu só quis ajudar!...
Refilão – Por mil raios e coriscos, que eu não acredito nisto, meu irmão Narigudo! Quem é esta nojentona irritadiça e maldosa que nos ocupou a roça? Isto é uma casa de trabalho... Rua, rua, com a sua fantasia!...
N – Refilão, cala-te, por favor. Ela também é filha do Senhor. Deixa-a acalmar, para ver se deixa de chorar...
B. N. – Desculpem, desculpem, por favor... Eu só queria descansar...
R – Bom, cala-te lá com essa baba e ranho, que eu sou um homem de antanho e não gosto de lamechices... Veste aí uma trapalhice qualquer e deixa-te de fantasias!...
B. N. – Posso ficar?
N. e R. – Podes, mas só hoje.
B. N. – Obrigada, obrigada, senhores anões!...
Chegam entretanto os cinco irmãos que, à voz do comando do Refilão, se sustiveram no passo:
R – Pançudo, Orelhudo, Descorado, Virtuoso e Poeta... Estugar o passo! Toca a dormir... Cada um para a sua toca, que hoje o Narigudo não encontrou caça para nós.
P – Eu só comi uma lagarta – diz o Pançudo ao Orelhudo.
O – E eu só ouvi as asas do grilo a bater na minha barriga – constatou o Orelhudo.
D – Ai que eu desmaio, ai que me vou – titubeia o Descorado.
Virtuoso e Poeta, com a fantasia à perna, dirigem-se para o leito. Era uma pequena e fofa toca para anões onde nunca faltava a fantasia... De olhos semi-cerrados – que os anões nunca dormem realmente – deixaram-se balançar pelos véus do seu sustento... Virtuoso, cheio da poesia do irmão por dentro, viu-se por dentro da sua barriguinha onde só encontrou harpejos de alegria
“Quem me quer bem, meu bem,
É quem me sustém....
Òóóóóóóóóh!”
V – Ó quanta melancolia na voz, ó minha avó! Que tem meu irmão poeta?
- É um sonhador invertebrado... Sustenta-se das asas com que voa. Tanto vive em Lisboa, como no prado da sua imaginação! Deixa-o dormir!
Ao lado do Poeta, Virtuoso ressonava. Farto de esperar pelo toque da sineta que os impelia para o trabalho, a anão Virtuoso despertou, abanou o irmão Poeta e como este nunca mais acordava, deu-lhe um valente safanão, o que fez com que este despertasse o Refilão que, com a sua voz de trovão, cornetou os outros todos:
- Toca a levantar! Marcheee!...
Branca de Neve, medrosa, nem um pouco se mexeu. Talvez se esquecessem dela... e com o rosa-chá das faces que encantavam as madrugadas de Fevereiro, ficou ali amarelinha de medo.
B. N. – Queres ver que se esqueceram de mim, ó minha Mãe do Céu, que me protegeste mais uma vez... Se não fora a minha tez se manchar de rosa-chá, eu já não estaria cá!
- Tem cuidado, Branca de Neve, que o anão Narigudo é o mais empertigado... É que se ele te cheira e te encontra por cá...
B. N. – Eu lhes faço um chá de rosas, minha Mãe Celestial...
- Como queiras, Branca de Neve...
Farta de florir nas faces da menina, a rosa-chá foi florir para o jardim, onde encontrou uma multidão de avezinhas que a floriram ainda mais. Toda a floresta desperta se encantou com a rosa-chá. É que ela não era de cá e nesta floresta amena, só a açucena floria por alturas de Fevereiro...
Carapinhas de rosas, pequeninas e ternurentas se enovelaram pelas narinas do anão Narigudo.
N – Cheira-me a mel! Cheira-me a mel, Refilão!... É por aqui, pela floresta mais densa... Por aqui, por aqui...
Todos à uma, que os anões irmãos andam sempre unidos, dirigem-se como formigas atrás do anão Narigudo.
- Mel! Mel Mel!... Comida, finalmente! Comidinha... – e Pançudo esfregava a rotunda pança numa autêntica dança.
“Quem me quer bem, meu bem,
É que me sustém!...”
O – Ah, já sei! É a filha do Rei da Floresta que decidiu abrir o pote! – diz o Orelhudo.
V – Calma, meus irmãos, que a virtude de Salomão nos ensina que
“Mel, se o achares, come o que baste, não te sacies,
senão depois talvez te enjoes e agonies” – acudiu o Virtuoso.
- Em tempos que já lá vão, eu não era vosso irmão. Por que razão, ó minha imaginação, tenho eu de aguentar este Descorado mesquinho, que nunca vê no caminho nada mais que um porco-espinho? Cala-te, solteirão maldito, que o mel de Branca de Neve é tão doce e tão certeiro, que nenhum de nós fica solteiro! É ela a nossa rainha!....
R – À uma p’ra casa! Marcheee!... – vocifera o Refilão.
Cheirosa e arrumada, com a casa do torvelinho toda lavada e vistosa, a bela rainha sorria.
B. N. – Eu sou a Branca de Neve, rainha do vosso cheiro, modéstia do vosso mando, mel dos vossos corações, música dos vossos ouvidos, vossa saúde e bem-estar, asas do amor eterno e poesia fraterna... Sou vossa amiga e rainha....Quereis-me vós aceitar?
Um a um, os anões soluçavam e, arrependidos, pediam a Branca de Neve que nunca mais os deixasse... A Rainha-Mãe Celestial sorria nas faces rosa-chá da sua filha querida.
Tontos de alegria e levados pelo mel da sua imaginação, encostaram o coração ao da rainha Branca de Neve e viveram séculos e séculos, enternecidos e amenos.
Casada e feliz com os sete anões servidores, a vida de Brance de Neve decorria calma e serena, sem qualquer desaconchego. Um dia, o Medo regressou.
- Madrasta molesta eu sou. Ainda vives, energúmena?
Um silêncio maior percorreu a floresta. Calma e serena, Branca de Neve esperou que a nuvem negra se afastasse no céu limpo. A chuva caiu depois: breve, mansa também e aligeirando as muitas flores que perfumavam a floresta.
- Como sois bela, Branca de Neve, e como é leve o vosso desejo de bondade. Amastes a vossa madrasta?
Branca de Neve sorriu. Afinal, aquela velhinha tonta que a confiscara ao seu pai, não era mais que uma nuvem, negra e densa decerto, mas que com o caminho certo que ela conseguira traçar, a conseguira afastar... Velha madrasta do espírito, a que tivera de enfrentar! Casara-a ela com a chuva mansa e breve do seu ser. Era ainda uma menina e já sabia prever que as nuvens densas do céu que de negro se revestem são sonhos maus para o ventre da terra que quer ser fértil. Foi um sonho derradeiro – ou seria um pesadelo? – aquele que ela enfrentara. Rainha do Céu e Terra era a Mãe que a ofertava ao serviço dos anões e porque soube servir sem a capa e espada dos homens, se viu de novo servir em alegria e bondade. É hoje poeta amena, gosta de servir tão bem que às vezes na pena da esferográfica que tem por dentro do computador, se lhe desperta a harmonia das vozes que a conceberam: vozes da Terra e do Céu? Vozes da desarmonia? A voz que sai do silêncio é sempre a mais desejada. Voz da Mãe que a consagrou no serviço à floresta foi só um sonho feliz ou não passou de uma sesta ao luar da fantasia? É Rainha da Harmonia a Branca de Neve florida que em qualquer estação dos tempos que nos povoam, nos traz paz e harmonia e se desenha em Lisboa ou outra cidade assim. Floresce em qualquer jardim, é a rosa-chá da bondade. Por cima, o céu estrelado lhe diria que é Janeiro; por dentro, sabe que não. Sabe que em qualquer estação do tempo que já não há, houve uma fada tranquila que por ser velha e, com sabedoria, Ter sabido despertar o amor dos seus anões, se devolveu a si própria e se encontrou com o Amor da Rainha que nos dá o mel melhor para a vida: sorrir é florir sempre.
E se quiserem ofertar outro fim a esta história, terão de ir à memória do vosso computador e relembrar o encanto a que ela se rendeu, quando bem mais velha e sábia, um príncipe a recolheu do altar do pensamento. Mas porque essa é outra história de amor em mim consagrada, eu que sou vossa almofada no leito em que vos dormis, me devolvo de novo a mim e me faço de Arlequim e com uma nova pirueta, vos falo da Nau Catrineta. Querem? Sim?... Então, aí vai!
Quando regressei a casa já não havia ninguém. Meu pai fora-se ultrajar com a minha madrasta e, como é habitual nestas histórias “madrasta entrada, filha molestada”. Só que entrar numa casa vazia, onde os móveis poeirentos nos lembram agonias, os sonhos das aranhas povoam a cómoda vazia e por dentro de nós só subsiste a vontade de um abrigo, é um pouco duro... Pano do pó em riste, água e aspirador prontos, a força da Mãe por dentro, limpa Branca de Neve o seu novo apartamento...
“Quem me quer bem, meu bem, me ama ainda mais
Quem me quer mal, meu Pai, me faz comer o sal...
Oooh oooh óóóh........................
Menina bonita, com cara de anjo, vem aqui comigo,
Traz a mim um sonho
Vem, fadinha linda, traz o teu encanto
Vem comigo sempre, mitigar o pranto...
Óóóóóóóóóh!...”
Bela como sempre e com flores de harmonia no canto, tudo o que na casa havia de poeira e agonia se afastou do apartamento. Limpa por dentro e por fora, a nova casa do amor da Senhora que ela era já, ficou pronta e sossegada.
No silêncio da floresta, só o canto dos pássaros a saudava. Saltitante e feliz, a borboleta adejava ao som da sua música e até os cogumelos com que ela se encantara, se vestiram de cores pintalgadas e se anelaram por dentro.
“Quem me quer bem, meu bem
O meu coração tem!
Vem, vem, vem!...”
Cantava a floresta com ela o seu sonho de verdade... A Primavera era tarda por vezes, mas a música da floresta era sábia de séculos e suturava as feridas das plantas inchadas pelo Inverno rigoroso. A pouco e pouco, também os filhotes das mais velhas plantas do Inverno ganharam força e sorriram à luz do sol que se avizinhava a pouco e pouco e de mansinho da nova casa da floresta, já limpa e arrumada para receber alguns hóspedes. Estava a Branca de Neve com o seu espelho de amor por dentro, quando com fragor e arrogância, é acordada por uma voz cavernosa e inchada, toda ela avermelhada num nariz de anão empertigado:
Narigudo - Quem és tu, ó criatura do Bem, que me arrumaste a casa e a limpaste, sem saberes quem era o dono?
B. N. - Como diz, senhor anão Narigudo? Eu sou a Branca de Neve florida. Desci do Inverno despida de alegria e aqui encontrei um pouco de fantasia...
N - Fantasia, minha cara menina? Um anão não sabe o que isso é! Não a quero cá, nesta minha casa... minha, não, nossa, que isto é só uma casa de irmãos. Quem a mandou fantasiar a nossa maneira de habitar?
B. N. - Desculpe, senhor anão, eu só quis ajudar!...
Refilão – Por mil raios e coriscos, que eu não acredito nisto, meu irmão Narigudo! Quem é esta nojentona irritadiça e maldosa que nos ocupou a roça? Isto é uma casa de trabalho... Rua, rua, com a sua fantasia!...
N – Refilão, cala-te, por favor. Ela também é filha do Senhor. Deixa-a acalmar, para ver se deixa de chorar...
B. N. – Desculpem, desculpem, por favor... Eu só queria descansar...
R – Bom, cala-te lá com essa baba e ranho, que eu sou um homem de antanho e não gosto de lamechices... Veste aí uma trapalhice qualquer e deixa-te de fantasias!...
B. N. – Posso ficar?
N. e R. – Podes, mas só hoje.
B. N. – Obrigada, obrigada, senhores anões!...
Chegam entretanto os cinco irmãos que, à voz do comando do Refilão, se sustiveram no passo:
R – Pançudo, Orelhudo, Descorado, Virtuoso e Poeta... Estugar o passo! Toca a dormir... Cada um para a sua toca, que hoje o Narigudo não encontrou caça para nós.
P – Eu só comi uma lagarta – diz o Pançudo ao Orelhudo.
O – E eu só ouvi as asas do grilo a bater na minha barriga – constatou o Orelhudo.
D – Ai que eu desmaio, ai que me vou – titubeia o Descorado.
Virtuoso e Poeta, com a fantasia à perna, dirigem-se para o leito. Era uma pequena e fofa toca para anões onde nunca faltava a fantasia... De olhos semi-cerrados – que os anões nunca dormem realmente – deixaram-se balançar pelos véus do seu sustento... Virtuoso, cheio da poesia do irmão por dentro, viu-se por dentro da sua barriguinha onde só encontrou harpejos de alegria
“Quem me quer bem, meu bem,
É quem me sustém....
Òóóóóóóóóh!”
V – Ó quanta melancolia na voz, ó minha avó! Que tem meu irmão poeta?
- É um sonhador invertebrado... Sustenta-se das asas com que voa. Tanto vive em Lisboa, como no prado da sua imaginação! Deixa-o dormir!
Ao lado do Poeta, Virtuoso ressonava. Farto de esperar pelo toque da sineta que os impelia para o trabalho, a anão Virtuoso despertou, abanou o irmão Poeta e como este nunca mais acordava, deu-lhe um valente safanão, o que fez com que este despertasse o Refilão que, com a sua voz de trovão, cornetou os outros todos:
- Toca a levantar! Marcheee!...
Branca de Neve, medrosa, nem um pouco se mexeu. Talvez se esquecessem dela... e com o rosa-chá das faces que encantavam as madrugadas de Fevereiro, ficou ali amarelinha de medo.
B. N. – Queres ver que se esqueceram de mim, ó minha Mãe do Céu, que me protegeste mais uma vez... Se não fora a minha tez se manchar de rosa-chá, eu já não estaria cá!
- Tem cuidado, Branca de Neve, que o anão Narigudo é o mais empertigado... É que se ele te cheira e te encontra por cá...
B. N. – Eu lhes faço um chá de rosas, minha Mãe Celestial...
- Como queiras, Branca de Neve...
Farta de florir nas faces da menina, a rosa-chá foi florir para o jardim, onde encontrou uma multidão de avezinhas que a floriram ainda mais. Toda a floresta desperta se encantou com a rosa-chá. É que ela não era de cá e nesta floresta amena, só a açucena floria por alturas de Fevereiro...
Carapinhas de rosas, pequeninas e ternurentas se enovelaram pelas narinas do anão Narigudo.
N – Cheira-me a mel! Cheira-me a mel, Refilão!... É por aqui, pela floresta mais densa... Por aqui, por aqui...
Todos à uma, que os anões irmãos andam sempre unidos, dirigem-se como formigas atrás do anão Narigudo.
- Mel! Mel Mel!... Comida, finalmente! Comidinha... – e Pançudo esfregava a rotunda pança numa autêntica dança.
“Quem me quer bem, meu bem,
É que me sustém!...”
O – Ah, já sei! É a filha do Rei da Floresta que decidiu abrir o pote! – diz o Orelhudo.
V – Calma, meus irmãos, que a virtude de Salomão nos ensina que
“Mel, se o achares, come o que baste, não te sacies,
senão depois talvez te enjoes e agonies” – acudiu o Virtuoso.
- Em tempos que já lá vão, eu não era vosso irmão. Por que razão, ó minha imaginação, tenho eu de aguentar este Descorado mesquinho, que nunca vê no caminho nada mais que um porco-espinho? Cala-te, solteirão maldito, que o mel de Branca de Neve é tão doce e tão certeiro, que nenhum de nós fica solteiro! É ela a nossa rainha!....
R – À uma p’ra casa! Marcheee!... – vocifera o Refilão.
Cheirosa e arrumada, com a casa do torvelinho toda lavada e vistosa, a bela rainha sorria.
B. N. – Eu sou a Branca de Neve, rainha do vosso cheiro, modéstia do vosso mando, mel dos vossos corações, música dos vossos ouvidos, vossa saúde e bem-estar, asas do amor eterno e poesia fraterna... Sou vossa amiga e rainha....Quereis-me vós aceitar?
Um a um, os anões soluçavam e, arrependidos, pediam a Branca de Neve que nunca mais os deixasse... A Rainha-Mãe Celestial sorria nas faces rosa-chá da sua filha querida.
Tontos de alegria e levados pelo mel da sua imaginação, encostaram o coração ao da rainha Branca de Neve e viveram séculos e séculos, enternecidos e amenos.
Casada e feliz com os sete anões servidores, a vida de Brance de Neve decorria calma e serena, sem qualquer desaconchego. Um dia, o Medo regressou.
- Madrasta molesta eu sou. Ainda vives, energúmena?
Um silêncio maior percorreu a floresta. Calma e serena, Branca de Neve esperou que a nuvem negra se afastasse no céu limpo. A chuva caiu depois: breve, mansa também e aligeirando as muitas flores que perfumavam a floresta.
- Como sois bela, Branca de Neve, e como é leve o vosso desejo de bondade. Amastes a vossa madrasta?
Branca de Neve sorriu. Afinal, aquela velhinha tonta que a confiscara ao seu pai, não era mais que uma nuvem, negra e densa decerto, mas que com o caminho certo que ela conseguira traçar, a conseguira afastar... Velha madrasta do espírito, a que tivera de enfrentar! Casara-a ela com a chuva mansa e breve do seu ser. Era ainda uma menina e já sabia prever que as nuvens densas do céu que de negro se revestem são sonhos maus para o ventre da terra que quer ser fértil. Foi um sonho derradeiro – ou seria um pesadelo? – aquele que ela enfrentara. Rainha do Céu e Terra era a Mãe que a ofertava ao serviço dos anões e porque soube servir sem a capa e espada dos homens, se viu de novo servir em alegria e bondade. É hoje poeta amena, gosta de servir tão bem que às vezes na pena da esferográfica que tem por dentro do computador, se lhe desperta a harmonia das vozes que a conceberam: vozes da Terra e do Céu? Vozes da desarmonia? A voz que sai do silêncio é sempre a mais desejada. Voz da Mãe que a consagrou no serviço à floresta foi só um sonho feliz ou não passou de uma sesta ao luar da fantasia? É Rainha da Harmonia a Branca de Neve florida que em qualquer estação dos tempos que nos povoam, nos traz paz e harmonia e se desenha em Lisboa ou outra cidade assim. Floresce em qualquer jardim, é a rosa-chá da bondade. Por cima, o céu estrelado lhe diria que é Janeiro; por dentro, sabe que não. Sabe que em qualquer estação do tempo que já não há, houve uma fada tranquila que por ser velha e, com sabedoria, Ter sabido despertar o amor dos seus anões, se devolveu a si própria e se encontrou com o Amor da Rainha que nos dá o mel melhor para a vida: sorrir é florir sempre.
E se quiserem ofertar outro fim a esta história, terão de ir à memória do vosso computador e relembrar o encanto a que ela se rendeu, quando bem mais velha e sábia, um príncipe a recolheu do altar do pensamento. Mas porque essa é outra história de amor em mim consagrada, eu que sou vossa almofada no leito em que vos dormis, me devolvo de novo a mim e me faço de Arlequim e com uma nova pirueta, vos falo da Nau Catrineta. Querem? Sim?... Então, aí vai!
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literatura tradicional
terça-feira, 15 de julho de 2008
A luz de Rembrandt
Rembrandt faz hoje 402 anos.
Ao tentar escolher um quadro do pintor, dei comigo a desistir: afinal, do que gosto mesmo é da luz que ele dá aos quadros e da minúcia do retrato a que empresta alma. Mas, e infelizmente, normalmente não gosto dos temas e da forma como ele vê a realidade: arte de excesso, pungente e dramática, quando não trágica.
Fez-me lembrar aqueles médicos que, para tratarem um doente, lhe entornam um manancial de explicações e eventuais sintomas, que são todos consequência hipotética daquele "sinalzinho" teimoso que acabámos por mostrar, sem porquê. Desejosos de sair da "aula de anatomia" de Rembrandt, mergulhamos na floresta ao sol-pôr e recolhemos a luz na máquina fotográfica, sempre amiga...
Queria homenagear o Rembrandt, mas não sei ainda que pedaço de luz para aqui transportarei, se é que não opto por um desenho (o leão...) ou estudo (a mulher...), em que pela simplicidade (aparente, pelo menos) me traz "o engenho e a arte" com que o costumo lembrar, sem o pensar.
O que ficar, é para o que dele há em nós de eternidade.
Ao tentar escolher um quadro do pintor, dei comigo a desistir: afinal, do que gosto mesmo é da luz que ele dá aos quadros e da minúcia do retrato a que empresta alma. Mas, e infelizmente, normalmente não gosto dos temas e da forma como ele vê a realidade: arte de excesso, pungente e dramática, quando não trágica.
Fez-me lembrar aqueles médicos que, para tratarem um doente, lhe entornam um manancial de explicações e eventuais sintomas, que são todos consequência hipotética daquele "sinalzinho" teimoso que acabámos por mostrar, sem porquê. Desejosos de sair da "aula de anatomia" de Rembrandt, mergulhamos na floresta ao sol-pôr e recolhemos a luz na máquina fotográfica, sempre amiga...
Queria homenagear o Rembrandt, mas não sei ainda que pedaço de luz para aqui transportarei, se é que não opto por um desenho (o leão...) ou estudo (a mulher...), em que pela simplicidade (aparente, pelo menos) me traz "o engenho e a arte" com que o costumo lembrar, sem o pensar.
O que ficar, é para o que dele há em nós de eternidade.
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sábado, 12 de julho de 2008
Tive sorte
Tive sorte. Nasci à sombra de um castelo medieval, de um casal com o sentido do ritmo. Do meu pai ficaram muitas histórias tradicionais, balanceadas nos joelhos onde nos equilibrávamos eu e os meus dois irmãos mais novos: contar uma história era dramatizá-la, encenada sempre connosco como personagens principais; da minha mãe, estão o canto, o emaravilhamento da poesia e de todo o acto criador: poemas, lengalengas, trava-línguas (à compita com o pai), rendas e bordados, patchworks e costuras...
E depois, tive a sorte de ter quatro irmãos, cada um parecido consigo próprio: aprendizagem contínua e educação para a vida.
E o castelo sempre lá... e os sonhos do tempo que transporta... (ainda hoje se me acendem na imaginação a memória das das patas dos cavalos medievais acendendo as lajes graníticas da rua do meu "Cimo de Vila").
E depois, tive a sorte de ter quatro irmãos, cada um parecido consigo próprio: aprendizagem contínua e educação para a vida.
E o castelo sempre lá... e os sonhos do tempo que transporta... (ainda hoje se me acendem na imaginação a memória das das patas dos cavalos medievais acendendo as lajes graníticas da rua do meu "Cimo de Vila").
quinta-feira, 10 de julho de 2008
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