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segunda-feira, 23 de junho de 2008

Violeta


Voltei-me
Intrigado:
Odor
subtiL
A lavado.


Onde está
Dona Violeta?
O
Rasto
A
T
Atapetado a ternura?...


Naquelas brincadeiras inocentes com que se ganham segundos ao relógio, era hábito perguntarmo-nos, inocentes:

- Se fosses uma flor, o que serias?
- Uma violeta...
- E um animal?
- Uma joaninha...

E era assim que eu sempre respondia. Pois é, meu bem, mas tudo afinal é um teste psicológico e só falamos (ou escrevemos) sobre nós e projectamos nos outros os sonhos que nos sonhamos e dizemos de nós o que precisamos na vida para lhe o ofertarmos de novo: simplicidade e Beleza, Subtileza e Humildade. Por mim, é igual. Ainda assim, prefiro a Violeta (e a Joaninha)


Gostava muito de ter um frasco de perfume em forma de "viola odorata"!... Talvez um dia uma "Joaninha" o sonhe (fazê-lo é que é pior!) Ai não passe um Lalique por ela e eu acabava por o encontrar naquele "Bazar Chinês" lá de cima...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Luís Sepúlveda, História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a Voar

História de Amor, Ecologia, Solidariedade e Verdade.



Do tempo em que os animais falavam, Luís Sepúlveda oferece-nos essa linguagem de afectos e lealdade à Natureza, convocando todos os gatos liderados pelo Zorbas (gato grande, preto e gordo) para ensinar à gaivota Ditosa (a quem vê nascer e morrer a mãe) o seu destino de Voo. O poeta ("que voa com as palavras") ajuda Zorbas e a sua gata Bubulina a fazer voar Ditosa do alto da Torre de São Miguel.








O poeta. o gato, a gaivota, todos eles têm medo, mas todos eles aprendem ao longo da Vida a superá-lo. Todos aprendem que a Vida é, com efeito, o bem mais precioso da Natureza e que um laço de Amor (e Linguagem) une todos os seres vivos. Por isso, todos eles se interajudam, transformando este livro numa belíssima lição de Humanidade, Ecologia e Amor.



Um hino à Vida, co(a)ntado por Luís Sepúlveda.

terça-feira, 10 de junho de 2008


História Tragico-poética

Lá vem a Nau Catrineta
que cansada ela nos vem!
Traz o destino na proa
Condu-la Senhora Mãe.

Pelos altos mares sem fundo
a proa encostou à ré.
Foi-se embora a alegria
das gentes, mas não a fé.
Eram tantas as tormentas
tão eriçadas as pontas
das ondas fragosas e imensas
que as gentes de Portugal
se despediam em silêncio
da vida e do sonho novo
que, na faina e na labuta,
os fizera percorrer
o caminho dos Infernos.

Foram muitos condenados
às vagas pelas galés.
Nelas foram sepultados
Sepúlveda e outras marés
do azar mítico português.
Nelas se foram os sonhos
de Dinis e do Infante
que à proa do olhar seu
outro destino sonharam
pr’às gentes do meu país.
Quis a molesta sorte deles
que nos mares desencontrados
dos sonhos por realizar
se avistassem com o Dragão,
pesadelo da Nação
de aquém e de além-mar.


Foi triste e cinzenta a noite
em que no mastro da fome
se eriçou Belzebu
contra o grande capitão
da grã-nau desta nação.
Contra ele se sorri
e se desfaz em promessas:
“Por ti, ó grão marinheiro,
eu vim cá com o meu parceiro;
trago-te a fama e o raio
que poderás desferir
sobre uma nação inteira
que à morte te condenou.
Trago-te ondas de riqueza,
malvasias de ventinhos
e, se quiseres, carneirinhos
que semearei nas ondas...
Tudo p’ra ti e p’ra sempre...”

Mais falara Belzebu,
se ao grande capitão
da nau que se esmorecia,
não regressasse a valentia
do seu nobre coração:
“A ti conheço, maldito!
A alma que aqui não pedes
É o que queres para ti...
Mas só ela me conduz.
E pelo amor que me trouxe
e connosco viajou,
eu te acrescento a lonjura
das gentes do meu país.
As garras aqui não pões,
porque à proa desta barca,
tu não mais terás poder.
Consagrada no areal,
a alma que aqui remámos
há um nome: Portugal!”

Retorce-se o medo imundo
pelos mares que já não há.
Foram sonhos de outras épocas...
Gente que já cá não está...
Mas fomos todos irmãos
e senhores desta Nação.
Pelas mulheres que rezaram
e nossos filhos geraram,
pelas praias do país,
cuja alma defendemos,
todos regressámos, todos,
- mais mortos que vivos já -,
mas à Nação Portuguesa,
despejados do terror,
aportámos e sonhámos
um novo destino ainda...
Na barca desta Nação
em cuja proa a Senhora
navegou até à praia,
todos chegámos, vencidos
de amor de nós e da Pátria,
prontos e restabelecidos
dos vendavais que passaram.
A brisa que a nós nos traz
as memórias de lonjura
da Mãe que nos conduziu
pelas águas, até aqui,
nos é ainda memória
do gesto de amor derradeiro
com que despedimos a morte
e o destino traiçoeiro.

Mas dos mares do passado
que nos sepultou heróis,
guardamos a arma do crime:
no mastro alto do sonho
da vida que nossa foi,
capitães houve, depois,
que ao destino entregaram
a alma que ele não tem.
Verbo consagrado em si
e em si próprio encerrado
nas masmorras de um país
que, nas vagas alterosas
de um sonho que quis cumprir,
acabou por não florir...

Vozes da Terra e do Céu
não chegaram ao Horizonte
do Setestrelo da Sorte...
Foram homens e mulheres.
Geraram filhos humanos.
Serviram com o seu desdém
o ultraje a um desgoverno
que, impotente e ultrajado,
se considerou magoado
e se vendeu ao estrangeiro.

Fomos por dentro de nós.
Navegámos à bolina
com a sorte que a brisa traz...
Não tem armas Belzebu
para aqui retroceder.
Não há morte, nem há guerra,
nem o país arderá
no inferno que aqui traz
o espírito santo da tropa
estrangeira a esta Nação.
Se somos todos irmãos,
almas em amor consagradas,
é porque os ventos da sorte
nos quiseram bafejar
com a alegria e a inveja
da Alma que aqui floresce.

Foi em Abril o condado
sonhado, aqui, traiçoeiro,
não foi, não, o estrangeiro
que nos repariu o Cruzado...
Fomos nós, também, mulheres,
que, na praia, abandonadas,
quisémos o mastro e o leme
da barca do nosso Amor
fazer navegar de novo...
Somos mulheres traiçoeiras,
diz o povo, e sem razão,
pois lhes doamos os filhos
que à Nação e não à Estranja
lhes pode trazer a bênção.

São os acasos da Sorte
da gente do meu país:
fracassos, derrotas... memórias
de outro tempo feliz!
À proa da Barca a Senhora,
Alma-Mãe desta Nação,
se entregou o nosso sonho
e o valoroso capitão
da nossa Nau Catrineta
que, no momento da sorte,
soube encontrar o seu Norte:
“Seja o Amor o meu fado
e sempre o possa eu cantar!...”

E a alma da Nação
no dia seguinte, a varar...

domingo, 8 de junho de 2008

A Vida das Palavras


O UNIVERSO DA PEDOFILIA


Morrem palavras desgastadas por um tempo devorador, mas crescem engastadas num tempo que é escultor.

“Dona” e senhora do coração medieval (herdeira da “mi dons” provençal), a palavra “Dona” transformou-se com o tempo em bengala de hierarquização social (D.ª). Desgastada em abreviatura, mais não é que a D. Maria do proletariado urbano, subserviente em relação à Srª D. Maria da alta burguesia, mas displicente em relação à ti’ Maria do povo rural ou à Maria, criada para todo o serviço e, às vezes, Mulher.
Engastada no tempo e sem perder nenhuma das suas mais-valias de expressão artística (e, por isso mesmo, sentimental), é amorosamente recuperada pela nova geração de adolescentes com o sentido arcaico de “eleita do meu coração”: a “minha dona” não se confunde no final do século XX e início do século XXI com a “minha garina”, a “minha miúda”, etc.

Vem esta reflexão de professora (pois foram os alunos que me explicaram esta nova versão de carinho amoroso), a propósito de um problema social que tem feito correr máquinas rotativas, impressoras de computador e tecer jogos verbais: orais (e anais, mais parecem alguns, com efeito...), expressões faciais (de amor, ódio, raiva, esperança... sentimentos que tais), etc... etc... e que dá pelo nome de PEDOFILIA.
Ao contrário da “Dona” medieval, amada e respeitada que o final do século XX vê ressurgir pela boca jovem dos adolescentes, a “pedofilia” (etimologicamente, amor às crianças) vê o seu percurso de palavra agonizar brutal e criminosamente nos lábios fálicos de um qualquer “erómano” militante.

Com efeito, “pedofilia” é palavra etimologicamente enraizada no grego (“paidos”= criança + “filos”=amor). O amor de “Filos”, que não é confundível na Grécia com o de “Eros”, subsiste em palavras como “Filosofia” (o amor à sabedoria), “Filantropia” (o amor ao ser humano) ou até no antropónimo “Filipe” (o que ama os cavalos). “Pedófilo” é, pois, por esta raiz de sabedoria arcaica, escorada na filosofia grega, um ser que sente o amor de “Filos” em relação às crianças. Na árvore genealógica de Pedofilia não há, pois, amor de Eros, mas – tentando definir o amor de “Filos” para português – respeito, carinho, atenção, dedicação, serviço... em relação às crianças e a favor das crianças. De facto, a relação que Eros institui com o corpo é uma relação de amor que procura na saúde física e psíquica a completude que em todo o ser humano é, simultaneamente, sonho palpável e efémero de um instante de eternidade e nostalgia breve de uma acronia universal. Menino travesso e ladino, de olhos vendados e sorriso à espreita, Eros é a brincadeira terna que une os corpos, a alegria breve que os enfeita e a sensualidade audaz que os desnuda. Em Amor, Eros mais não é que a “infância”...
Sob o olhar conspícuo de um “australopitecus”, vulgar galã de formas e velho sedutor da criança de olhos vendados (a criança ela-própria, o próprio corpo do Deus-menino: Eros), o “bébé” não é já mais do que um objecto roubado à sageza do mundo, à sensatez do humano e à alegria da maternidade (ou paternidade que, neste caso, é o mesmo). Erómano de si mesmo, o “pedófilo” (que assim hoje é chamado) vive a clausura social dentro de si. Doente, “maníaco de crianças”, chamar-lhe-ia com maior propriedade PUERÓMANO, neologismo criado sob o paradigma do “pirómano” ou do “cleptómano”, retirando assim da sua genealogia verbal toda e qualquer relação com o Amor que à Grécia repugnaria e só a Roma confundiria. E digo que a Roma confundiria, porque às três palavras que no grego expressavam o Amor (Eros, Filos e Agapé), Roma as (con)fundiu, gerando um “Amor” demasiado lato, que a civilização portuguesa a pouco e pouco foi também ela destrinçando pelo seu enriquecimento cultural/verbal. E é por isso que em Portugal temos o "amor do corpo" (erótico), o “amor da mente, espiritual” (filosófico) e o “amor ao outro” (filantrópico).

Por tudo o que disse, em pleno século XXI, a “Pedofilia” arcaica, grega, morreu. Morreu a palavra, porque morreu o Amor que lhe estava na génese. E por isso recorro à genética Roma, que (con)fundiu as três formas de Amor grego no seu “Amor, amoris”, para por via erudita nos criar um neologismo que diga a nova realidade psíquica dos que sofrem em português do amor erógeno pelas crianças: PUEROMANIA (“puer”=criança + “mania”=obsessão).
Assim sendo, o que a sociedade vem punindo não é o arcaico “pedófilo” que ama com amor desinteressado e humano a criança, mas o PUERÓMANO, o que investe na criança um erotismo adulto, não a respeitando como ser em formação, humana e psiquicamente falando.

Se “Chronos”, o Tempo, devorou o afecto da “mi dons” retirando-lhe o possessivo, transformando-a em “Dona” e “D.” Fulana de Tal, um Tempo novo a recuperou em afecto e ternura no final do século XX, com a recuperação pela gíria juvenil da “MINHA DONA” (=A MULHER QUE EU AMO: a “sinhor do meu coraçom” medieval).

Na esperança que o mesmo processo recupere a “pedofilia” do seu passado próximo de dor e lhe traga pelo Verbo o engaste cronológico do Amor ... escrevo. Para que na origem grega se pense também a Língua Portuguesa.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O Medo é amigo da Cautela e inimigo da Temeridade


DA IMPORTÂNCIA DE TER MEDO
em
O Gato das Botas (C. Perrault) e O Homem que Busca Estremecer (A. Coelho)


“Pourquoi ce silence prolongé sur le rôle de la peur dans l’histoire?”
(Delumeau, 1978: 13, 14)


INTRODUÇÃO

Os contos em análise[1] ilustram o tipo 545B (Puss in Boots) e o tipo 326 (The youth who wanted to learn what fear is) do catálogo de Aarne – Thompson, Types of the Folktale. O Gato das Botas já fazia parte das compilações italianas de Straparola e Basile (séculos XVI, XVII). De grande divulgação entre o público infantil, quer na sua vertente oral, quer na escrita, continua a ilustrar o fascínio que a magia arcaica exerce sobre as crianças: o gato, amigo e “deus” onírico do homem – “Trickster” matreiro, astuto e fautor da felicidade do herói – traz ao público infantil a alegria da sua ascese (sou o que sou, porque já aprendi com os homens a não confiar no fascínio que exerceram sobre mim). Quanto a O Homem que Busca Estremecer, suficientemente atestado na nossa tradição oral, surge com mais rara divulgação escrita[2], apesar de nos parecer um exemplo cabal de ilustração da sociedade agressiva (e, desse ponto de vista, arcaica), em que as crianças têm de evoluir. As “fantasmagorias” que perpassam o tecido dos “textos” audiovisuais consumidos avidamente pelas crianças (ex: série “Dragonball”) são uma réplica no futuro dos “fantasmas” que o nosso herói teve de ultrapassar no passado. Deste ponto de vista é, pois, natural que a sua divulgação entre o público infantil seja mais rara, visto que o presente que habitamos já se não compadece com o conceito de “almas penadas” que assolam o mundo dos vivos com fantasmas que é necessário vencer, mas optou entretanto pela projecção, no futuro, de heróis espaciais, mais ou menos robóticos que, despojados do medo que os faria fraquejar, evoluem de forma idêntica, pelo sentimento de Amor que (os) liberta. Songoku, herói libertador da série “Dragonball”, vence pela razão e pelo amor as hostes interplanetárias que ameaçam a sua vida e a da Terra (onde cresceu e se tornou “humano”), na eterna luta social e anímica em que o homem tem de crescer. Por razões óbvias para qualquer criança, também Songoku – porque não tem medo –, tem direito a “estremecer” de amor nos braços da sua amada, constituindo com ela uma família feliz bafejada por dois filhos. Quem vence é sempre o herói social, pois animicamente já evoluiu para o estádio em que pode assumir um papel de relevo na sociedade: com ele se identificam as crianças e a criança grande que subjaz no coração de todos os adultos. O nosso “Homem que Busca Estremecer” é um jovem “adolescente”, saturado de viver numa sociedade em que a sua diferença o coloca numa posição marginal, o que obviamente o impele para a partida de um seio que lhe não é já maternal, mas de afronta psíquica constante (o que também acontece com Songoku, no planeta onde nascera). Parte com o objectivo místico de se integrar na sociedade que o criou e educou (conhecer o “medo” que os outros conhecem), mas regressa afinal com um novo sentido de vida que sempre revivificará a sociedade arcaica de onde partiu. É, por isso, um homem feliz e assim no-lo apresenta o conto nas suas diferentes versões.

O Gato” e o “Homem que Busca Estremecer”, heróis dos nossos contos, representam por isso duas asceses no tempo, aos quais foi socialmente entregue a incumbência de, pela sua actuação anímica, combater o mal-estar que povoava de guerras, ódios, injustiças ou mortes a sociedade humana que tinham “herdado” e onde tinham crescido na infância. O seu papel será pois o de, pela sua luta, sempre solitária (pois são eles os “diferentes”), revigorar o novo tronco da árvore da sabedoria que, entretanto, fora semeada com nova raiz - a da esperança de vida numa nova geração já nascida com a capacidade de não “estremecer” frente aos “fantasmas” do passado (para o herói) e do presente (para a sociedade) - e procurar na nova raiz do medo a esperança de salvação da sociedade agonizante em que foram educados.

AO ENCONTRO DO “HERÓI”

Enquanto no conto tipo 326, o herói é definido “a priori” como humano, no do tipo 545 B, o herói é um ser animal (gato na nossa tradição, mas macaco, por exemplo, na versão recolhida por Fontes na Nova Inglaterra). A dissociação homem/animal, tão grata ao mundo da infância, revela a presença de forças exteriores ao homem que o ajudam e o impelem à acção. Dum certo ponto de vista, o gato é o herdeiro animal da sociedade humana dos “padrinhos”, “santos” e outros iniciadores que, pela fé, ou pela razão, ajudam o ser humano a evoluir (cumprir o seu destino). É por essa razão que o ser animal, “gato” nos nossos contos, apresenta toda a dimensão humana do “fazer” (saber em acção) em contraponto à passividade do ser da criança deserdada pela família. Para o público infantil, o herói é o “Gato das Botas”; para nós, adultos, o herói é a criança deserdada pelo pai, frente à agressividade de um meio social que lhe não oferta as condições mínimas de sobrevivência, num mundo orientado pelo dinheiro (que não tem), pela posição social (de que carece) e pelo Poder ele-próprio (ódio ancestral à “criança” promissora pelas suas virtudes anímicas), personificado no Gigante/Ogre mágico que possui a terra, tiraniza os seus habitantes e constitui uma ameaça constante ao verdadeiro rei: o que vela pelos súbditos e pretende revivificar o reino por um casamento promissor para a sua filha.
Este ponto de vista de “dissociação de personalidade”, grato à infância, é anulado eficazmente por certas versões populares, o que filia o conto no que designamos por “tradição do mito em acção”[3], na medida em que este sempre se renova pela múltiplas virtudes combinatórias que o operacionalizam à revelia dos tempos e dos espaços (“Era uma vez... num reino muito distante...). O “Gato das Botas” transforma-se, no final, literalmente em príncipe, ou seja, o herói completa a sua ascese, incorporando em si o que nele existia em forma virtual já na sua infância: a capacidade, depois feita necessidade, de se defender (lado animal do ser humano).
No conto tipo 326, o herói não apresenta qualquer dissociação de personalidade, ou seja, já traz dentro de si as capacidades de defesa do Ogre/fantasma/diabo/feiticeiro, etc., e pode por isso enfrentá-lo sem qualquer risco para a sua vida humana. As forças telúricas, das trevas, que ele vai enfrentando, só o revelam como um ser que só desconhece de si o que nele é esperança de revivificação/reanimação social, seja ele:
A) o centro das atenções de uma sociedade masculina, guerreira por excelência, que festeja em tempo de “paz” os seus “troféus de guerra ou caças”, podendo ulteriormente transformar em gabarolice o feito guerreiro do vencedor dos seus medos; assim a sociedade ganha o seu “trinca-fortes” / “valentão das dúzias” (V252, V256, V292);
B) o filho atento e “devoto” de uma “mãe solitária” , sociedade no feminino, centrada no rejuvenescimento harmonioso dos filhos que, mais tarde, terão de cumprir o seu destino fora da órbita maternal (versão de Alexandrino);
C) o novo rebento destas duas sociedades, centradas, a primeira no masculino (guerreira) e a segunda no feminino, (pacífica), mas que já tiveram o tempo suficiente para amadurecer no seu seio a esperança de vida que o herói reinicia. Como? Através de um casamento, conseguido fora da sociedade “endogâmica” em que todos subsistem mas que, inevitavelmente e pela lei natural do seu destino, revivificará a sociedade de origem através da sua ligação à “senhora das pombas”: esposa, mulher, amante e, futuramente, Mãe de uma nova sociedade reiniciada em Amor. Desta sociedade poderemos dizer que, ela sim, é acrónica e utópica, pois vive da estrutura onírica mais forte no ser humano: a de ligar pelo elo do Amor todos os seus filhos. Nela se filiam todas as religiões e/ou filosofias de vida.
Os contos tipo 545B e 326 definem, como aliás todas as outras narrativas de acção, o perfil do seu Herói: ser místico consigo próprio, capaz de encontrar na sua solidão a força anímica que o ajuda a evoluir, pois o seu destino – sendo à partida, diferente - , terá de ser encontrado fora das quatro paredes de um castelo mágico fechado sobre si - mesmo (sociedade que o acolheu e educou para lhe ser um “igual”). O herói parte, porque tem de partir: para sua própria saúde (salvação, felicidade) e, paradoxalmente, para a da sociedade que o vê partir. Tudo o resto são aventuras, escolhos anímicos de um mundo que na adolescência já não fazia parte de si e que, fora do perímetro social de origem, terá de novo de enfrentar. O seu acesso à idade adulta ser-lhe-á ofertado pelo novo medo que vai descobrir e só assim enceta o seu verdadeiro (aqui sinónimo de feliz) percurso humano.



O GATO DAS BOTAS

Deserdado da sorte, só com um gato por herança, o filho mais novo do moleiro lamenta a triste sina que o passado lhe ofertou. Simpático e truão, malabarista de emoções, gato fiel e amigo domesticado, pede o gato ao seu amo que lhe confie o seu destino: botas e chapéu do “patrãozinho”, um saco às costas para a caça e ei-lo duplo do herói. Sagaz, cauteloso, brilhante caçador e excelente gestor da imagem do seu amo, realiza numa apurada estratégia de “marketing” a campanha de entronização do seu “Marquês de Carabás” no mais elevado trono do reino dos corações: casa-o com a filha do rei e endossa-lhe por artes mágicas o reino do Ogre velho, malvado satanás do povo que vinha oprimindo e vexando.
Mais sábio que o Ogre em manha e astúcia, levou-o de leão a rato que lhe foi cair no papo... “Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém!” – dir-se-ia o Gato das Botas frente ao velho ogre enfunado de prosápia e arrogância...
Tem medo o Gato das Botas? Não tem medo, tem cautela e é como duplo do herói, com o traje humano deste, que realiza as tarefas que são da aprendizagem humana. Durante o tempo das “provas”, é o herói (“príncipe encantado” que visa o Amor) que se oculta na identidade desse gato que o ajuda, assumindo o lado mais animal (esperto, predador de instinto, ardiloso, traiçoeiro...); o filho do moleiro limita-se, entretanto, a ser surpreendido pelo bom termo das tarefas que o gato vai sabiamente planeando e vencendo.
O casamento do rapaz com a princesa deve-se não só à magia da mente, feita perspicácia e sagacidade felina, que consegue combater os adversários e aplanar os caminhos do futuro príncipe, mas também ao mistério de coração que une magicamente o herói - menino à sua princesa - consorte. É sempre obra da magia a sua sorte, mas é a magia do coração que ele sente e persegue que no fim o premeia e consorcia com a sua verdadeira herança de vida: o Amor.
O futuro príncipe é, neste contexto, o representante do homem tímido, da “criança” que não ousa, não sabe e teme aproximar-se do castelo de encantar, onde a sua vida pode enfim ganhar sentido: é no castelo - coração da mulher amada que ele tem de ser ajudado a entrar. A nudez do seu sentimento premeia a sua inocência infantil, mas o homem tímido que já é, carrega nos ombros a diferenciação social, o receio do ridículo, o medo da espera, a angústia do nada ou o da rejeição. É um homem – menino, um ser receoso e humilde, incapaz de ultrapassar sozinho as duras provas que a sociedade lhe impõe: ser “gato das botas” (astucioso, mentiroso, malabarista de ilusões...) até conseguir revelar-se como o consorte da princesa ou, por outras palavras, como um ser digno de sentir o Amor. Premeia-o o conto com a felicidade, secundarizando na mesma medida, as regras sociais que distanciam e punem os corações generosos que simplesmente se unem pelo amor que os rege.
Tem medo o filho do moleiro? Tem. E é premiado.
A crer nas palavras de Stith Thompson[4] há porém algumas versões em que, no final, a cabeça do gato é cortada e este regressa à forma original de príncipe, como se, durante um tempo, ele tivesse de assumir, “encantado”, uma identidade social oposta à do tímido filho do moleiro, deserdado e sem sorte. Assim sendo, torna-se mais evidente que o “Gato das Botas” não é mais que a exteriorização feita gato do não - tímido que o filho do moleiro necessita ser, se quer socialmente ascender e por essa via conseguir aquilo que lhe é de direito: a herança do Amor, pelo consórcio de coração com a princesa. Embora pareça abstrusa neste contexto a comparação, a verdade é que há semelhança por um lado entre o filho do moleiro e o marinheiro português das Descobertas que, temeroso e receoso, se deixam guiar e presentear finalmente pela intervenção mágica e divina: no primeiro, a do gato que fala, herança mítico - mágica do “tempo em que os animais falavam”; no segundo, a dos deuses olímpicos, herança greco-romana de deuses egoístas, interesseiros e poderosos, mas cuja acção na epopeia camoniana o presenteia com o sonho do Oriente. “Tricksters” de emoções, o gato que fala e os deuses olímpicos representam neste ensejo duas heranças míticas pagãs, mas um mesmo tronco comum: psicanaliticamente, poder-se-ia dizer que todo o ser humano traz em si inscrito este arcabuz de “artes e manhas” ou “artimanhas” – características dos nossos antepassados míticos – que o impede de ter medo e avançar em função de um objectivo de lucro ou poder. A luta que o ser humano, homem - menino ou homem de coração tem de travar consigo mesmo é, impedido de ser “deus”, deixar-se ajudar pelas forças do destino que o desejam presentear pela sua mais - valia de coração. Os deuses morrem, são substituídos: o gato é decapitado, como se a tarefa ingrata de conduzir pela mente o destino da criança se tivesse esgotado na substituição da ordem imposta pelo Ogre pela nova ordem que o Príncipe de Coração tem de resgatar e ajudar a implementar no mundo. Ser gato mágico trapaceiro e ardiloso ou deus clássico quezilento, ciumento e vingativo é etapa de crueldade para o coração, amordaçado pelo poder da mente que tudo faz, sabe, pode (e frequentemente consegue), para obter a denominada “realização pessoal”.
Tem medo o Gato das Botas ou, nas últimas versões referidas por Thompson, o Príncipe que ele é, ocultamente? Não tem, mas é cauteloso e consegue derrotar o outro deus: arcano da memória dos povos, o Ogre é o mais tirano do povo e é por isso que o gato - príncipe é premiado. Neste contexto, assume assim o papel social de libertador dos mais fracos (de que o filho do moleiro faz parte), que o reabilita em honra e glória aos olhos do verdadeiro rei daquele reino[5]. O único que realmente não tem medo e é, por isso, arrogante e tirano é o próprio ogre, força mágica brutal e selvagem, lídimo representante mítico das forças devoradoras do homem que só sucumbe à nova força mágica de um tempo mais doméstico, aqui representada pela sabedoria do “gato das Botas” que, sabiamente, o leva a metamorfosear-se em rato para depois o devorar. E é o ogre social, o “homem” que não tem medo e “devora”, que é verdadeiramente punido pelo conto tradicional, oferecendo o papel de herói libertador ao “gato mágico”, amigo fiel do ser humano e capaz de ajudar pela sua sabedoria de vida[6] o mais pobre filho de moleiro, cujo coração lhe permite também, por direito, ser príncipe de coração. E assim o casa o gato e o conto, claro está.


O HOMEM QUE BUSCA ESTREMECER

Começa o conto pela partida do herói. Deixa para trás o passado de aconchego – a sua “infância” de ser humano, na protecção da casa familiar – e parte rumo a si próprio: “Meu pai, dê-me o que me pertence, que eu cá vou viajar.” Esta busca de si-mesmo é, neste conto, bastante curiosa: quebrar o seu “fado” implica buscar “estremecer”, ter medo (“Dava-lhe o signo dele de ir passar muitas terras e não seria timorato, nunca teria medo a coisa nenhuma.”).
No percurso que enceta, enfrenta de imediato o que a qualquer ser humano provoca medo e terror: um fantasma que impede a família de habitar a sua casa (“andava lá um diabo estoirando dentro das casas”). O motivo do corpo que cai aos pedaços e aterroriza os visitantes serve aqui a busca de um herói que, entendemos depois, ainda não é humano e por isso enfrenta, sem medo, aquilo que de certa forma lhe é familiar: a força bruta, selvagem, indomesticada – alfobre de tiranos, memória de ogres e titãs, terror religioso medieval (“diabo”, “medo”). É esta força psíquica, caótica, que só se orienta pelo objectivo que o norteia (um “ideal” a cumprir, um “fim” em vista, um “sonho” a realizar) e que não é capaz de se humanizar, flexibilizando essa força em função dos objectivos que também norteiam o “outro” de si, que o herói do conto tem que combater. Como? Enfrentando a história do próprio “medo”, “diabo” do ser humano, que o impede de progredir em segurança na calma do que o conto oferece como solução antinómica: a paz familiar, a humildade e o agradecimento, a convivência pacífica no seio do “feminino” (mãe e filha, que constituem este mundo harmonioso do coração, dos sentimentos e da partilha dos afectos).
Diz-lhe o fantasma, já em forma humana (resultado da intervenção humana do herói que “da parte de Deus” lhe pediu que unisse as várias partes do corpo que tinham caído), que “Eu sou o dono desta casa; possuía uma quinta alheia, que não me pertencia; se a minha mulher a não restituir, vou para o inferno e toda a minha família; se a restituir, vamos para o céu.” Este confronto entre o Bem e o Mal, psicomaquia arcaica que reside em cada ser humano, vai oferecer ao herói a possibilidade de tomar consciência da linha de fronteira existente entre o que é lícito e ilícito, entre o que no ser humano é de Deus e o que nele é do Diabo. Neste caso, o que a força bruta que o fantasma representa oferece ao herói é a consciência do que uma vida norteada por um sonho de bens materiais pode arrostar para o ser humano. O fantasma, “duplo” do herói, revela as consequências da sua irrupção no mundo: errância e cegueira na prossecução de um objectivo / ideal. Enquanto ser humano, conta o fantasma a memória de uma vida construída sobre a infelicidade alheia, mas também o arrependimento dos seus actos tresloucados e com consequências desastrosas para aqueles que amou / ama: a mulher e a filha. A reposição da ordem (“devolver o seu a seu dono”) trará a alegria à família e a anulação do fantasma enquanto entidade psíquica que destrói, corrói e provoca o caos e o terror naqueles que se deixam habitar por essa forma de estar e de ser (servirem-se dos outros) e mesmo naqueles que, alheios a essa forma de ser, se transformam em vítimas inocentes desse poder fantasmático (o da máscara da ordem, que é sempre um caos a breve, médio ou longo prazo). Nesta ordem de ideias se entendem a tirania social e a guerra psicológica, que se exercem sobre as mentes dos que teimam em ser iguais a si próprios e só assim podem progredir, felizes.
Sofre o herói? Não. Porquê? Porque ainda não tem medo, porque ainda não “estremeceu” com nada. E é o conhecimento do “medo”, do “estremecer”, que delimita no conto – parábola do ser humano – a fronteira entre o que ele está sendo e o que quer vir a ser; entre o destino / “fado” / “signo” e a vida nova que quer cumprir. Enfrenta o “fantasma” de si, o “outro” de si, aquele que rejeita em si e ajuda-o a salvar-se. Contudo, o herói nunca “estremece”[7] e a sua busca continua: “Quero ser solteiro”, responde ao pedido de casamento da filha do “fantasma”. Parece este episódio de confronto com o “diabo” não ter qualquer interesse para a mudança de destino que o herói persegue; contudo, é ao abrir a prenda que a referida moça lhe oferecera que ele, pela primeira vez, “estremece” e assim cumpre o seu objectivo: ser homem igual aos outros e, ironia do destino, ele que rejeitara o consórcio com a rapariga, vai agora pedi-la em casamento e, claro, ser feliz com ela.
Como se opera simbolicamente esta transmutação psíquica? Ao abrir a oferta (“um casal de pombas fechadas num gigo”), as pombas esvoaçam(-no) e ele, surpreendido, “estremece” e cumpre assim a sua demanda: como se, de repente, o seu “gigo”- coração sempre fechado fosse aberto pela chave do Amor saído da ternura, bondade e agradecimento da jovem moça a quem ele resgatara o seu destino e o de toda a sua família. Ele e ela, duas pombas (símbolo frequente das “almas”) unidas em coração. Deste “estremecimento” de amor, várias consequências para o herói / ser humano: abandona o seu “fado”, rejeitando a vida de errância e de “trinca-fortes” e fixa-se, pelo casamento, no mundo pacífico da família e do coração da casa. Só com o casamento acorda, “estremece”, ganha medo: toma consciência do Outro e do Amor. Assim se completa como ser humano e é feliz.

Desta versão de “conto de fadas” que nos é oferecida na antologia de Adolfo Coelho, encontramos eco em outras versões através do motivo das “pombas”/”pássaro” (V251, V293). Contudo, nestas, o herói continua a ser o “trinca - fortes” social, que acrescenta à sua ascese/aprendizagem mais este episódio que fará as delícias dos seus conterrâneos (sociedade patriarcal/masculina, centrada sobre o egocentrismo do seu “fazer” e que vive na interdependência de um feminino, também ele arcaico, sem voz). Neste mesmo tipo de sociedade poderão ser inseridas as outras versões de Vasconcellos. Em V171, o herói, após recolher o dinheiro que lhe cabe da sua luta com o “fantasma” , serve - se deste episódio para vencer a “princesa que só casa com aquele que lhe coloque uma adivinha a que ela não saiba responder”. O herói vence-a, pois ela não sabe justificar uma razão do “humano”: por que razão ele rejeitara a parte do dinheiro pertencente ao fantasma. Com efeito, este mau carácter da princesa será aprofundado pela encenação de adultério, que levará o herói social a abandoná-la. V251 e V256 apresentam-nos o “soldado” / ”militar” , cujo percurso de aprendizagem se diz na guerra e V292 traz à tona um “salvador do povo”, “homem valente” que erradica da sociedade os medos ancestrais antropomorfizados no episódio do fantasma que cai aos pedaços.
No feminino, surge a versão V294, onde a heroína é uma “Velha”, cuja sageza ancestral evita o ludíbrio social, antropomorfizado na figura do “mouro” , asceta do dinheiro, que a atrai à sua “mina”... A velha, que obviamente desconhece o medo, consegue ludibriar o “ludibriador” e rouba-lhe o dinheiro que a lenda repõe depois, como tendo sido aplicado em obra social: edificação do Hospital de Santarém.

Do ponto de vista psico - analítico, o conto do “Homem que Busca Estremecer” apresenta-nos três etapas de auto - reconhecimento da sociedade humana:
· Sociedade pacífica, mas de “subsistência onírica”, visto que se basta a si-própria nas recordações de um passado de “caça” e outros “troféus”. Centrada sobre si própria, nela estiolarão os novos filhos, sementes de um mundo novo que se dirá em outras sociedades. O seu herói é o “fanfarrão”, velho “trickster” arruaceiro, já esquecido dos tempos mágicos dos “gatos das botas” em que ser “Trickster” era ser verdadeiro (justo) com a sociedade que rejeitava os seus melhores filhos.
· Fora da sociedade guerreira, subsiste ainda outro tipo de herói: o “filho” da mãe (solteira, viúva, divorciada) que deixa amorosamente o filho partir para encontrar o seu destino, mas o espera sempre de regresso ao lar. É uma sociedade pacífica, que alberga naturalmente e em franco convívio não só os guerreiros que partem em prol da defesa da sua própria terra, mas também das mães que em anseio os esperam para todos subsistirem harmoniosamente no seio da comunidade que assim os acolhe e recolhe (cf. versão de Alexandrino).
· Finalmente, encontramos a sociedade que se renova pelos filhos de uma nova geração já sonhada em amor fora da própria sociedade de subsistência (e, neste caso, a consideramos endogâmica), através de um casamento de amor entre o herói e a amada que, fulgurantemente, o “estremece” por dentro e a ambos faz sorrir em destino. Foi a esta sociedade que mais espaço ofertámos nesta análise, a partir de um estudo mais detalhado da versão de Adolfo Coelho, e que configura afinal o universo da realidade dos “contos de fadas” com que todos fomos embalados na infância.


CONCLUSÃO

O primeiro herói (“Gato das Botas[8]”, “Psyché em pena” ou vulgar filho de moleiro), bem como o segundo (“Homem que deseja estremecer”) revelam-nos na sageza dos textos em análise que o seu caminho é sempre o de uma busca da felicidade individual, mediatizada pelo enfrentamento racional das regras que a sociedade humana lhes propõe e impõe.
Em termos humanos, ambos casam (ou se harmonizam socialmente), ambos são felizes, ambos se afastam dos comparsas - adjuvantes da sua peregrinação interior (gato e “diabo”): morre o gato (em algumas versões) e transforma-se no príncipe ou vive como nababo na corte do rei, findo já o seu papel de Trickster matreiro, sedutor e espertalhão que vence as barreiras sociais que o impedem de chegar ao amor; desaparece o diabo e, com ele, a corrupção das almas pelo dinheiro, pela cobiça, pelos meros prazeres sociais e fica o homem, finalmente, capaz de “estremecer” pelo “inesperado” frente ao “novo”. Quem os vence? O Amor. Quem vence? Os Heróis. Quem os segue? A eterna criança que há em nós e sabe que, só com um percurso de vida completo, se pode avaliar da raiz de sermos com os outros o melhor de nós mesmos: luta pela justiça social, pela paz dos corações, pela vida utópica e acrónica onde a raiz do medo velho se estiolou e só a nova raiz do medo (o esvoaçar brando do amor) ou os receios inerentes a essa aprendizagem que no conto se diz “casamento”, pode ainda fortalecer-se em sementes e frutos que ajudem a sociedade a “crescer”.
Como fio humano percorrendo a trama das histórias, encontramos, pois, a raiz do medo: da arrogância, à cautela, ao “estremecer” de alma. Labirintos e caminhos. Vidas. Vidas consagradas pelo tempo em contos que esculpem a memória da humanidade, devolvendo-nos a arte da magia do coração que é perene no tempo da Criança que todo o ser humano quer em si conservar e educar. Neles (contos/labirintos/destinos), o Adulto se refrega e se espelha para se encontrar em herói. Como ser incompleto, sempre em demanda de si e do seu melhor, aprende – às vezes bem a custo – a lição breve da simplicidade e da verdade: quem me ama, ajuda-me; quem me rejeita, impede-me de ser o que procuro (o que já sou em busca).
Simples e verdadeiro, como qualquer lição de vida que a mestra que esta é nos ajuda a ajustar, o conto é também ele um sábio artesão nos seus ajustes: morrem os oponentes, se o herói acorda e se deixa presentear pelo Amor que o ajusta ao sonho de ser feliz.
“Quero estremecer”: enfrento o fantasma da tirania e aprendo que “eu não sou ele”; já “acordado”, o herói é presenteado pelo destino e termina a sua busca.
“Quero ser feliz”: criança perdida, confio no outro de mim (“gato das botas” / “padrinho”/ “esposa”) e deixo-me ajudar e presentear pelo destino. Sou ainda o “príncipe encantado” das belas “fadas – consortes”, cujo reino povoa a imaginação do mundo.
Quanto ao “medo” ou ao “estremecer”, parece que quem o não sente, o procura e só o procura quem ainda não é humano.
Fronteira psíquica que é necessário conhecer e transpôr, o medo é amigo da cautela e inimigo da temeridade. Breve acordar de vida, é esperança de harmonia entre o que somos (estamos sendo) connosco e com os outros de nós.
Sempre em lições de vida, o homem conta (-se) no conto que ouve, lê, recria e sonha: “estremece” e “fada-se” em escrita.


BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:
COELHO, Adolfo (1985), Contos Populares Portugueses, D. Quixote, Lisboa
COOPER, Alice (1983), Fairy Tales, The Aquarian Press, Wellingborough, Northamptonshire
DELUMEAU, Jean (1978), La Peur en Occident, Fayard, Paris
FONTINHA, António (1997),Contos Populares Portugueses ouvidos e contados no Concelho de Palmela, Câmara Municipal de Palmela
GRIMM, Jacob et Wilhelm (1986), Contes I, Flammarion, Paris
PERRAULT, Charles (2001), O Gato das Botas, “Contos Clássicos” 1, reescrita e adaptação de Margarida Braga, Papa-Letras, Lisboa
SOROMENHO, Alda da Silva e Paulo Caratão (1986), Contos Populares Portugueses, II, Centro de Estudos Geográficos, I.N.I.C., Lisboa
THOMPSON, Stith (1977), The Folktale, University of California Press
VASCONCELLOS, José Leite de (1963) Contos Populares e Lendas I, Coimbra
A Tradição (1997), Câmara Municipal de Serpa, 2ª edição em fac-símile
João Sem Medo, “Contos de Sempre” (1988), traducão de Espirídia Viterbo e adaptação à Língua Portuguesa por Isabel Patrícia e Martins da Rocha, EDINTER, Porto


RESUMO

Confrontados perante a figuração do medo, o “Gato das Botas” e “O Homem que Busca Estremecer” encenam duas etapas do conhecimento humano na sua relação com a comunidade de origem.
Privado do seu estatuto filial, o filho mais novo do moleiro enceta um percurso de conhecimento que o leva, através da ajuda do “gato mágico” (duplo do herói) ao que nele é origem de abandono: preterido na herança familiar, terá de ultrapassar pela astúcia/inteligência as forças telúrico-mágicas que são condensadas na figura sobre-humana do “ogre” social e onírico.
Quanto a “O Homem que Busca Estremecer”, o seu percurso de conhecimento humano corresponde ao esvoaçar de alma que lhe é peculiar e o torna herdeiro legítimo de uma nova sociedade que sonha libertar-se dos “ogres” circunstanciais do tempo civilizacional que cada versão encena. Assim sendo, o herói – libertador guerreiro de umas versões dá lugar ao filho estremoso de uma sociedade pacífica para, em outras versões (que privilegiámos na análise) se encontrar definitivamente na esfera social, através do percurso de Amor que lhe traz um casamento promissor de novos filhos que, esses sim, poderão revivificar e reunir em si as virtualidades oníricas das três sociedades atrás aludidas: a Força do guerreiro, o Amor filial, o Sonho de futuro. Três sociedades: três heróis. A cada uma, o herói necessário no momento histórico-civilizacional que cada versão encena.
A ambos os contos preside um mesmo veio de Amor: encontrar pelo Medo o percurso que nos leva, enquanto seres humanos, do “tremer” ao “estremecer”. Em sintonia com o primeiro “conto” do universo.

[1] 545B Puss in Boots:
Ø Pedroso (RH XIV 1906), 163
Fontinha 1997, 119-120
Ø Soromenho 1984, # 28
Soromenho 1986, # 652
Ø Fontes (New England), # 76

326 The Youth who wanted to Learn what Fear is:
Coelho 1985, # XXXVII
Vasconcellos 1963, # 251
Vasconcellos 1963, # 252
Vasconcellos 1963, # 256
ŊVasconcellos 1963, # 292
Vasconcellos 1963, # 293
ŊVasconcellos 1963, # 294
Ø Fontes 1975, # 9
Ø Enes (Bol. Inst. Da Ilha Terceira VIII), 69-75
Ø Soromenho 1984, # 147
Alexandrino (A Tradição II 1900), 29-30; 45-46
ŊFontinha 1997, 115-116

Nota: o índice das versões portuguesas aqui apresentadas foi-nos gentilmente cedido pela directora da revista ELO, professora Isabel Cardigos, a quem muito agradecemos, e ao qual tomámos a liberdade de acrescentar as versões assinaladas com Ŋ. As versões assinaladas com Ø não foram por nós consultadas.
[2] Cf., por exemplo, João sem-medo, Edinter, 1988
[3] com efeito, não nos parece ajustada a teoria que vê no conto um “mito degradado” mas, antes pelo contrário, sendo de filiação mítica, herdeiro portanto de um a utopia e de uma acronia, o conto é a evolução certa e ajustada num determinado tempo e num determinado espaço psicossocial da verdade maior que o mito encerra (ascese ou aprendizagem necessária ao género humano para evoluir). Neste sentido se cristaliza em versões várias, sempre reajustável a outras formas de ascese (cristalizadas em outros contos, herdeiros mitico-temporais de uma determinada civilização), re-criando novas versões com as suas possíveis e civilizacionalmente ajustáveis variantes.
[4] “At the end, the cat’s head is cut off and thus the enchantment is broken, so that he returns to his original form as a prince.” (Thompson, 1977: 58)
[5] Como em David e Golias, é no mais fraco que reside a força. Da fraqueza (que nunca é cobardia) faz coragem ( que nunca é temeridade). Vence pela astúcia, vulgo inteligência e até criatividade, a força bruta que o desafia. E é sempre a “criança”, que cada ser humano também é, que leva a bom termo a tarefa de fazer justiça, como se mais não fosse que um instrumento da própria magia universal: a da Harmonia de cada ser consigo mesmo e também com o outro de si (no filho do moleiro e também no Gato das Botas). Como refere Alice Cooper, “The Trickster differs from children who outwit ogres, witches and evil powers. Here innocence exerts its natural protection, while the Trickster uses ruses and intelligence to circumvent difficulties and pitfalls; but both exemplify situations in which the weak outwits the strong.” (Cooper, 1983: 94)

[6] “When [the Trickster] has an altruistic motive for his actions he represents the evolution of the individual from the chaotic and amoral unconscious to responsible consciousness.” (Cooper, 1983: 95) (itálico nosso)
[7] Na versão de Grimm, Histoire d’un qui s’en alla pour apprendre le tremblement, o herói é sujeito a uma panóplia de provas (pp. 26 - 35) com seres do “outro mundo” num crescendo de horrores e torturas psíquicas, para um ser humano dito “normal”. Nesta versão, o rapaz casa com a filha do rei e só aprende o “estremecer” quando a esposa lhe lança em cima “um balde de água fria” (“La nuit même, tandis que le jeune roi dormait, la princesse eut soin de le découvrir en rejetant les couvertures, puis elle l’inonda de l’eau froide du seau où frétillaient les goujons”, p. 36). Idêntica solução nos oferece a versão escrita para português de João Sem Medo (1988). É, portanto, o inesperado que lhe oferta o que ele tanto procura. Que seja a mulher a artesã deste inesperado é facto também encenado no “coup de foudre” que o herói sente pela “senhora das pombas”, em outras versões.
[8] As botas, como símbolo do ordálio do herói, remetem-nos para as “Botas de Sete Léguas” que o herói tem de calçar para percorrer os caminhos do mundo ou nos “sapatos de ferro” que a deusa Vénus faz calçar a Psyché para a obrigar a amar o filho, Eros (ou, homologamente, o príncipe-animal faz gastar à noiva que o ultraja e abandona).

terça-feira, 3 de junho de 2008

"O Mito é o Nada que é Tudo" (Fº Pessoa)

Mármore de Paros

a beleza nua

de um perfil

desenhado nas águas

a curva forte das espáduas

sobre o Oceano

como...

se fora Deus

se potro selvagem

cavalgando a fúria

da perfeição de Ogígia

e eu - Calipso -

erguendo a taça

do seu sangue novo

à altura antiga

das margens do teu corpo.

domingo, 1 de junho de 2008

"De Brevitate Vitae"




Somos infância de gravata

e salto alto

na cinzenta cidade

que nos é presente

quando uma fatia de azul

nos alimenta

a memória

de castelos erguidos

à medida do sonho


Ainda (tão só) ontem!...